Na última coluna, denominada “A microfísica do instrumentalismo: as técnicas jurisdicionais não inquiridas por teorias processuais”[1], João Carlos de Carvalho Salles demonstrou – acertadamente – a necessidade de desmitificar as técnicas instrumentais que visam apenas e tão somente reduzir o processo a um instrumento de pacificação rápida e eficiente de conflitos. Além dessas críticas realizadas, bem como as que já fizemos ao instrumentalismo processual em outras oportunidades[2], crucial também demonstrar a incompatibilidade de um aspecto desse modelo com o Estado Democrático de Direito, qual seja, a figura do juiz-antena.
Em sua obra “A instrumentalidade do processo”[3], Cândido Rangel Dinamarco irá propor a concepção de que a jurisdição deve ser o centro gravitacional do direito e, para tanto, defende que o processo é seu instrumento. Dinamarco irá defender que o estudo da jurisdição e de seu instrumento “deve extrapolar os lindes do direito e da vida, projetando-se para fora. É preciso, além do objetivo puramente jurídico da jurisdição, encarar também as tarefas que lhe cabem perante a sociedade e perante o Estado como tal”.[4]
Assim, mencionado jurista passa a defender que o processo, como instrumento da jurisdição, deve buscar seus escopos, quais sejam, social, econômico, político e jurídico, e, como principal objetivo, deveria o processo ser método para efetivar a pacificação social.
A partir de tal noção, Dinamarco defende que juízes e tribunais seriam os únicos legitimados a fixarem o sentido normativo, já que seria o legitimo “canal através de que o universo axiológico da sociedade impõe as suas pressões destinadas a definir e precisar os sentidos do texto, a suprir-lhes eventuais lacunas e a determinar a evolução do conteúdo substancial das normas constitucionais”.[5]
Ou seja, o juiz, inserido nas estruturais estatais de poder, seria a via entre a sociedade e o direito, motivo pelo qual a sua interpretação e decisão seriam consequência das opções axiológicas que predominam na sociedade, a partir da percepção do julgador. Desse modo, para a instrumentalidade, o juiz se tornaria o intérprete qualificado (oráculo) que buscaria os valores predominantes na sociedade e decidiria com base em tais valores.[6]
Em suma, leciona Georges Abboud:
“O modelo instrumentalista, justamente por não ter a dimensão de uma teoria do poder e por dialogar muito pouco com os avanços do constitucionalismo, deposita extrema confiança no agir dos magistrados, que deverão extrair as ‘legítimas expectativas’ da sociedade, canalizando-as no momento decisório. Para os instrumentalistas, o juiz seria um agente privilegiado que, inserido na trama social, funcionaria como uma espécie de ‘antena’, apta a captar os anseios sociais dominantes – as escolhas axiológicas da sociedade -, construindo as suas decisões/interpretações com base nos valores majoritários por ele ‘receptados’.” [7]
Logo, o juiz instrumentalista seria o captador dos anseios sociais e os utilizaria no momento decisório. E é em razão dessa captação-canalização de anseios sociais que leva Antônio Carvalho Filho a denominar o julgador instrumentalista de juiz-antena:
“Constroi-se, a partir daí, um modelo de juiz: um representante do povo, que possui legitimidade democrática tal qual um parlamentar (poder legislativo), que deve estar atento aos anseios e motivações da própria sociedade. É o juiz-antena (ou juiz formiga-atômica), capaz de receber, ler e decifrar os impulsos sociais e os clamores majoritários de justiça e moralidade. “Eliminar conflitos mediante critérios justos – eis o mais elevado escopo social das atividades jurídicas do Estado”. O juiz é, senão, o “gerente nato do bem-comum”, o jungido para ser “a providência de seu povo”. A justiça é para Dinarmarco o “escopo-síntese”, pois expressão do “bem comum” (welfare state). A esperança depositada pela escola instrumentalista do processo é em um juiz onisciente, ‘magnânimo e preparado’”. [8]
No entanto, “a atribuição da função de atender a anseios sociais, alheios à decisão do caso, não mais se sustenta em um paradigma democrático de processo”.[9]
Primeiro, porque cria-se um espaço desprocessualizado e excepcional, no qual o julgador afasta o princípio da legalidade para aplicar o seu entendimento particular sobre os anseios sociais que “captou” ou criou a partir de sua própria consciência.
Nesse sentido, a decisão se torna incontrolável e infiscalizável, já que o predomínio da consciência do julgador sobre a lei “leva a espaços inalcançáveis pela argumentação das partes, nos quais o magistrado opta por uma interpretação dentre as possíveis – boa escolha discricionária – por razões não jurídicas”.[10]
Desse modo, o juiz-antena, ao basear sua decisão em critérios extralegais e metajurídicos, transforma o povo em mero ícone[11] a motivar suas escolhas discricionárias (autoritárias). Ocorre, então, o esvaziamento dos direitos e garantias fundamentais das partes[12], em clara violação à constitucionalidade democrática, na medida em que o julgador decide fora daquilo que preconiza a legalidade, sem qualquer controle ou fiscalização.
Segundo, pois não é crível que alguém possa reunir a condição infalível de canalizar todos anseios de justiça social a partir de uma sociedade pluralista como a que estamos inseridos.[13] Ou seja, o julgador não pode ser considerado como um sujeito superior dotado de uma “inteligência especial ou capacidades metafísicas de compreensão da sociedade e atuação volitiva para atendimento dos seus anseios”.[14]
Ora, o julgador é um ser falível, razão pela qual “é necessário humanizar o juiz para a sua condição própria de falibilidade-humana”.[15] Por isso, no Estado de Direito Democrático, deve-se “abandonar o mito do saber pelo sujeito-autoridade”, a fim de que seja inaugurada “uma racionalidade que se sabe falível, fundamentada na evolução do conhecimento pelo racionalismo crítico”.[16]
Terceiro, pois na história da humanidade já se teve a atuação jurisdicional como legitimadora de regimes totalitários, em especial o nazismo alemão, quando juízes decidiam com base nos valores do povo alemão e sobrepunham tais critérios acima da lei. Nesse período, a metodologia nazista sincronizou o judiciário com o pensamento nazista “não por meio da vinculação à lei, mas por meio da vinculação ao valor”.[17]
Vale dizer que, no nazismo, os juízes atuavam como engenheiros sociais, ao canalizarem e portarem os valores da sociedade, realizando nesse período autorizações de esterilizações em massa dos judeus, além de chancelarem medidas de pseudo-eugenia.[18]
O papel do juiz no período nazista é apontado por Ingeborg Maus:
O juiz não tem que atuar como porta-voz de um sentimento nacional qualquer, mas ensinar a um povo “doente” um sentimento “sadio” – é justamente nisso que consiste sua função de superego. Nem o próprio conceito pressuposto de povo é empírico: quando o juiz – como formulam as “Cartas aos Juízes”, publicadas pelo Ministério da Justiça do Reich desde 1942 – é empregado como “protetor dos valores de um povo e […] destruidor dos desvalores”, o povo torna-se, como “unidade”, como povo “verdadeiro”, o objetivo e o produto da atividade decisória judicial.[19]
Tem-se clara, portanto, que a atuação do juiz-antena “constituía elemento necessário para a instrumentalização do direito como ferramenta dos desígnios totalitários do nacional-socialismo”.[20] Assim, é perigosa a captação de anseios e valores sociais pelo julgador que pode auxiliar na implantação de regimes autoritários, bem como a concretizar um ativismo judicial autocrático e antidemocrático.
E, em quarto lugar, podemos mencionar que a instrumentalidade traz a sua própria autofagia, na medida em que o juiz-antena não consegue colocar fim a todos conflitos da sociedade, ou seja, não consegue alcançar a utópica paz social, como aponta Roberta Maia Gresta:
“Decorre dessa visão o renitente compromisso servil do instrumentalismo com Estados de Direito dogmáticos, perpetradores de intensa violência social pelo autoritarismo, pela exclusão e pelo esvaziamento da Cidadania. As sucessivas gerações de instrumentalistas parecem ignorar o fracasso histórico da expectativa de que a pacificação judicial poria fim aos conflitos sociais, que é também fracasso do próprio instrumentalismo”.[21]
São perceptíveis os paradoxos e a crise[22] do modelo instrumentalista do juiz-antena em razão da total ausência de legitimidade de suas decisões, uma vez que, no Estado Democrático de Direito, o resultado decisório “passa pela institucionalização das condições para que os afetados pelas decisões possam participar da construção e interpretação normativas, bem como fiscalizá-las”.[23]
Assim, “o juiz ou o decididor, nas democracias, não é livre intérprete da lei, mas o aplicador da lei como vinculado aos interpretantes legais ante as articulações lógico-jurídicas produzidas pelas partes implementadoras da estrutura procedimental”[24]
Podemos concluir que o juiz-antena é incompatível com a processualidade democrática e devemos nos manter firmes no enfrentamento de tal figura, a fim de que se possa alterar esse status quo[25] que apenas legitima práticas autoritárias por uma razão instrumental em pleno Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF/1988).
REFERÊNCIAS
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ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
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CARVALHO FILHO, Antônio. Precisamos falar sobre o instrumentalismo processual. Empório do Direito, Florianópolis. Coluna ABDPro. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-2-precisamos-falar-sobre-o-instrumentalismo-processual-por-antonio-carvalho-filho>. Acesso em: 05 de set. de 2021.
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MADEIRA, Dhenis Cruz. Argumentação jurídica: (in)compatibilidades entre a tópica e o processo. Curitiba: Juruá, 2014.
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MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Letargia dogmática, ensino jurídico e tirania jurisprudencial. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: < https://www.contraditor.com/letargia-dogmatica-ensino-juridico-e-tirania-jurisprudencial/>.
MUNDIM, Luís Gustavo Reis. O “Paradoxo de Bülow” no Novo Código de Processo Civil: os artigos 8º e 140 como homologadores do solipsismo judicial. In: FREITAS, Sérgio Henriques Zandona; LEAL, André Cordeiro; FRATTARI, Rafhael; ENGELMANN Wilson. (Org.). Jurisdição e Técnica Procedimental. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.
MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Poderes instrutórios do juiz e totalitarismo hermenêutico no CPC/2015. In: MORATO, Gil. (Org.). Pelos corredores da faculdade de direito: por mais ciência e menos doutrina. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. v. 04, p. 257-281.
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá. 2011.
[1] CARVALHO, João Carlos Salles. A microfísica do instrumentalismo: as técnicas jurisdicionais não inquiridas por teorias processuais. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: <https://www.contraditor.com/a-microfisica-do-instrumentalismo/>
[2] Conferir: MUNDIM, Luís Gustavo Reis. O “Paradoxo de Bülow” no Novo Código de Processo Civil: os artigos 8º e 140 como homologadores do solipsismo judicial. In: FREITAS, Sérgio Henriques Zandona; LEAL, André Cordeiro; FRATTARI, Rafhael; ENGELMANN Wilson. (Org.). Jurisdição e Técnica Procedimental. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016 e MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Poderes instrutórios do juiz e totalitarismo hermenêutico no CPC/2015. In: MORATO, Gil. (Org.). Pelos corredores da faculdade de direito: por mais ciência e menos doutrina. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. v. 04, p. 257-281.
[3] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
[4] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, cit., p. 181-182.
[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, cit., p. 46.
[6] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 283
[7] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro, cit., p. 283.
[8] CARVALHO FILHO, Antônio. Precisamos falar sobre o instrumentalismo processual. Empório do Direito, Florianópolis. Coluna ABDPro. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-2-precisamos-falar-sobre-o-instrumentalismo-processual-por-antonio-carvalho-filho>. Acesso em: 05 de set. de 2021. Georges Abboud também utiliza a denominação de juiz-antena. ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro, cit., p.282.
[9] BURGARELLI, Vítor. Mídia, direito penal e vulnerabilidade: a opinião pública na decisão penal. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 139.
[10] BURGARELLI, Vítor. Mídia, direito penal e vulnerabilidade: a opinião pública na decisão penal, cit., p. 140.
[11] “O povo-ícone é carente de legitimação, pois não participa do espaço político de construção das decisões estatais. É um objeto na voz do governante autoritário, que sempre o invoca para justificar seus atos. Nesse sentido, o autocrata costuma dizer que fez isto ou aquilo em nome do povo. Que povo é este? Justamente, o povo-ícone, pois este não existe, não se inclui no sistema jurídico e não possui vida política. O povo-ícone na voz do déspota, passa a ser fonte de expressões como bem comum, interesse público, finalidade social etc., tudo isso, também, alimentando a ideia de que os agentes do Estado são capazes de captar uma, também icônica, vontade do povo”. MADEIRA, Dhenis Cruz. Argumentação jurídica: (in)compatibilidades entre a tópica e o processo. Curitiba: Juruá, 2014, p.336.
[12] No processo penal, a figura do juiz-antena também é perigosa, já que pode permitir com que o discurso midiático influencie os caminhos decisórios sem promoção dos direitos e garantias do acusado, como aponta Vítor Burgarelli em excelente obra sobre a temática: “Todo esse caminho é permeado de espaços de discricionaridade preenchidos pelo inconsciente – ou consciente, mas não dito expressamente – ideológico, criminológico, político, etc., do julgador que, enxergando-se como figura carismática de quem a população ensandecida pela narrativa do crime pode esperar satisfação, assume para si o objetivo de acalmá-la”. E conclui: “Portanto, com o auxílio de espaços de discricionariedade e fatores inconscientes que permeiam e determinam a decisão judicial em matéria criminal, o sistema penal enxergado concretamente se vê incapaz e desinteressado em promover direitos e garantias individuais do réu, incorporando, ao invés, o discurso midiático periculosista que clama por uma resposta severa”. BURGARELLI, Vítor. Mídia, direito penal e vulnerabilidade: a opinião pública na decisão penal, cit., p. 142.
[13] CARVALHO FILHO, Antônio. Precisamos falar sobre o instrumentalismo processual, cit.
[14] CARVALHO FILHO, Antônio. Precisamos falar sobre o instrumentalismo processual, cit.
[15] CARVALHO FILHO, Antônio. Precisamos falar sobre o instrumentalismo processual, cit.
[16]CARVALHO, João Carlos Salles de. Pedagogia judicial e processo democrático: a fala processual como exercício de cidadania. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 49-50
[17] MAUS, Ingeborg. O judiciário como superego da sociedade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.51.
[18] NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá. 2011, p. 93.
[19] MAUS, Ingeborg. O judiciário como Superego da Sociedade, cit., 33.
[20] ABBOUD, Georges. Direito constitucional pós-moderno. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p.126.
[21]GRESTA, Roberta Maia. Introdução aos fundamentos da processualidade democrática. Coleção estudos da Escola Mineira de Processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. v. 01, 141-142.
[22] LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, Faculdades de Ciências Humanas/FUMEC, 2008.
[23] LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise, p. 148.
[24] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: primeiros estudos. 15. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 71.
[25] É o que denunciamos em coluna anterior: MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Letargia dogmática, ensino jurídico e tirania jurisprudencial. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: <https://www.contraditor.com/letargia-dogmatica-ensino-juridico-e-tirania-jurisprudencial/>.