1- Introdução
Após mais de um ano de seu início – e ainda sem perspectiva de fim, a Pandemia da Covid-19 ainda traz preocupações ao mundo inteiro. Um dos chamados grupos de risco é composto pelas gestantes, e, nesse contexto, sobreveio a Lei n.º 14.151/2021, de 12 de maio de 2021 (publicada em 13/5/2021).
O que se pretende nesse breve artigo não é questionar a finalidade da lei, que é a proteção à saúde da empregada gestante e do nascituro, mas a forma escolhida pelo legislador para alcançar esse intento.
2 – Da necessária proteção à gestante e ao nascituro durante a Pandemia da Covid-19 e a Lei n.º 14.151/2021
Ainda não há estudos definitivos quanto ao tema, mas o Ministério da Saúde considera que as gestantes fazem parte do grupo de risco da Covid-19 desde os primeiros meses da Pandemia. Nesse sentido, conforme divulgado no sítio daquela pasta já em abril de 2020, a titular da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM), Cristiane Britto, disse[1]:
“As gestantes estão no grupo de risco e precisamos reforçar os cuidados, bem como garantir que o acompanhamento, tão indispensável ao período, seja realizado. Nesse sentido, buscamos o Ministério da Saúde e as secretarias locais para nos apoiar na disseminação de informações que possam ajudar a população”
Em data mais recente, o Secretário de Atenção Primária à Saúde daquela mesma pasta, Raphael Câmara, chegou a recomendar que os casais adiem os planos de gravidez em razão da Pandemia[2]:
“Estudo nacional ou internacional não temos, mas a visão clínica de especialistas mostra que as variantes têm ação mais agressiva nas grávidas. Antes, o risco maior estava ligado ao final da gravidez. Mas, agora, vemos uma evolução mais grave no segundo trimestre e até no primeiro trimestre”
(…)
Caso possível, postergar um pouco a gravidez para um melhor momento, para que você tenha uma gravidez mais tranquila. É lógico que a gente não pode falar isso para quem tem 42 ou 43 anos, mas para uma mulher jovem que pode esperar um pouco, é o mais indicado”
Nesse ínterim, gestantes e lactantes foram incluídas nos grupos prioritários para vacinação contra a Covid-19, muito embora, em razão de alguns casos de reações ainda em investigação, o mesmo Ministério da Saúde tenha recomendado a aplicação apenas de vacinas de fabricantes específicos[3].
Portanto, nesse cenário de incertezas, me parece razoável e prudente que as empregadas gestantes, enquanto durar o estado de emergência decorrente da Covid-19, sejam afastadas das atividades presenciais, ficando à disposição para exercerem atividades em seu domicílio pelos meios tecnológicos disponíveis. É o que diz o art. 1º da Lei n.º 14.151/2021:
“Art. 1º Durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do novo coronavírus, a empregada gestante deverá permanecer afastada das atividades de trabalho presencial, sem prejuízo de sua remuneração.
Parágrafo único. A empregada afastada nos termos do caput deste artigo ficará à disposição para exercer as atividades em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância.”
Quando o trabalho à distância for possível, não haverá maiores problemas – ressalvada, é claro, a permanente discussão quanto à possibilidade ou não de controle de jornada do empregado que atua longe do estabelecimento do empregador.
A situação que motiva esse texto é outra: a que resulta da impossibilidade do trabalho remoto (trabalhadoras de limpeza e conservação, da área de produção da indústria, atendentes de pequenos comércios e etc). Essas empregadas ficarão afastadas do trabalho sem prejuízo da “remuneração”.
O termo escolhido pelo legislador deixa claro: não se trata de um benefício previdenciário, mas do pagamento da contraprestação devida pelo empregador, sem que ele se valha da força de trabalho da empregada.
A incongruência dessa opção legislativa será melhor abordada no tópico seguinte.
3 – Da finalidade da previdência social e a solução adotada em outros casos em que a empregada gestante precisa se afastar do trabalho.
A Constituição Federal de 1988 trata do Regime Geral de Previdência Social nos arts. 201 e seguintes. Nos termos do art. 201, o chamado RGPS tem, dentre as suas finalidades:
“I – cobertura dos eventos de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada;
II – proteção à maternidade, especialmente à gestante; (…)”
Assim, a empregada, em geral a partir do 28º dia anterior ao parto, tem o direito de se afastar do trabalho por 120 dias (regra), sem prejuízo da sua fonte de renda. Trata-se do salário-maternidade, benefício previdenciário previsto nos arts. 18, “g” e 71 e seguintes da Lei n.º 8.213/91. Ainda que, em certos casos, seja o empregador que pague o valor do benefício diretamente à empregada, há uma compensação no momento do recolhimento das contribuições previdenciárias cota-parte empregador, de modo que o salário-maternidade é efetivamente custeado pela Previdência Social (art. 72, § 2º da Lei n.º 8.213/91).
Com a mesma finalidade de proteção à maternidade, o art. 394-A da CLT determina que a empregada gestante ou lactante seja afastada das atividades insalubres, sem perda salarial.
Porém, o § 2º do mesmo art. 394-A é claro ao estabelecer que, embora o empregador deva continuar a pagar o adicional de insalubridade, garantindo a irredutibilidade salarial, haverá compensação quando do recolhimento das contribuições previdenciárias:
“§ 2o Cabe à empresa pagar o adicional de insalubridade à gestante ou à lactante, efetivando-se a compensação, observado o disposto no art. 248 da Constituição Federal, por ocasião do recolhimento das contribuições incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço.”
Da mesma forma, o § 3º diz textualmente que, se não houver possibilidade de a gestante ou lactante exercer atividade salubre, “a hipótese será considerada como gravidez de risco e ensejará a percepção de salário-maternidade, nos termos da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, durante todo o período de afastamento.”
Portanto, nos dois exemplos aqui mencionados, o ônus financeiro da justa proteção à maternidade, especialmente à gestante e à lactante, recaiu sobre a Previdência Social, e não sobre o empregador.
Ora, o afastamento da gestante das atividades presenciais em razão da Pandemia da Covid-19 é uma determinação legal que obviamente decorre do mesmo mandamento constitucional: a proteção à maternidade, à gestante e ao nascituro.
Vale destacar que a Previdência Social integral integra a Seguridade Social, que tem como fundamentos, dentre outros (art. 194, V e VI da CF/88), a “equidade na forma de participação no custeio” e a “diversidade da base de financiamento”. No mesmo sentido, no art. 196 da mesma CF/88 é de uma clareza solar ao estabelecer que a saúde, direito de todos, é dever do Estado.
Nesse ínterim, não é razoável que o empregador arque, sozinho, com o custo dessa (repita-se: justa) proteção às gestantes nesse momento de incertezas.
Há de se pontuar ainda que a mesma Pandemia da Covid-19 que torna imprescindível um especial cuidado com a saúde das gestantes também acentuou a crise econômica preexistente, especialmente com as medidas tomadas por várias autoridades estaduais e municipais no sentido de restringir a circulação de pessoas e o funcionamento de diversos estabelecimentos na tentativa de diminuir a circulação do vírus. Boa parte do empresariado lutou para não fechar as portas nos últimos meses.
Nesse contexto, a Lei n.º 14.151/2021 pode até mesmo causar um efeito contrário ao pretendido. De fato, não é difícil imaginar que, especialmente micro e pequenos empresários, que em geral tem poucos empregados, fiquem reticentes em admitir mulheres enquanto durar a Pandemia da Covid-19, já com receio de uma futura gestação.
Ademais, há de se lembrar a suspensão do contrato de trabalho, atualmente regida pela MP n.º 1.045/2021, tem o limite de 120 dias, salvo se sobrevier ato do Poder executivo autorizando a prorrogação (art. 8º).
Assim, na hipótese de o empregador já ter se valido dessa possibilidade (suspensão do contrato) e a colaboradora vier a engravidar, ele pode se ver obrigado a pagar o salário integral de sua empregada por cerca de oito meses (até o início do salário-maternidade) sem se valer da força de trabalho dela. E um ônus muito pesado para boa parte dos empreendedores do país, especialmente nesse momento.
4 – Conclusão.
A empregada gestante precisa de especial proteção do ordenamento jurídico, e não poderia ser diferente durante a Pandemia da Covid-19.
Logo, é louvável a intenção da Lei n.º 14.151/2021 ao afastar tais empregadas do trabalho presencial, pois a medida visa a proteger a saúde tanto da futura mãe quanto dos nascituro.
Porém, uma leitura mais atenta do texto constitucional deixa patente que não se pode atribuir ao empregador o ônus de arcar com os salários da gestante nas situações em que não seja possível o trabalho a distância.
Dessa forma, defendo uma alteração da Lei n.º 14.151/2021, para que nessa hipótese o início do benefício da licença-maternidade seja antecipado, nos mesmos moldes em que previsto no art. 394-A, § 3º da CLT.
Outra solução proposta é que o empregador possa suspender o contrato da empregada gestante conforme a MP n.º 1.045/2021 mas sem a limitação de 120 dias, ou seja, até o início do salário-maternidade.
[1] Disponível em https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/abril/ministerio-divulga-orientacoes-sobre-coronavirus-a-gestantes-e-lactantes. Acesso em 9/08/2021, às 08h50.
[2] Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56807695. Acesso em 9/08/2021, às 09h00.
[3] Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/saude-e-vigilancia-sanitaria/2021/07/governo-recomenda-vacinacao-contra-covid-19-em-gestantes-e-puerperas-sem-comorbidades. Acesso em 09/08/2021 às 09h10.