Coordenadores: Miguel Kfouri Neto e Rafaella Nogaroli
Nos últimos anos temos observado uma crescente da judicialização da Medicina. Se antes o suposto infortúnio era tido como produto do “azar”, inserido dentro de uma margem de falibilidade e da própria restrição da Ciência Médica, a contemporaneidade vive um cenário de hiperdemanda da judicialização da Medicina.
No passado, o médico era tido como um representante de Deus na Terra, de modo que eventual “mau resultado” seria depositado nos desígnios da Autoridade Superior.
Ocorre que, a partir de uma revolução do enfrentamento do resultado não positivo na Medicina, o médico passou a ser analisado como um ser falível e que os maus resultados poderiam ser decorrentes da falha.
Todavia, o que seria uma possibilidade de culpa profissional passou a ser interpretada como uma presunção de culpa profissional, cabendo, por vezes, ao médico comprovar a ausência de culpa e o estrito cumprimento dos deveres profissionais.
Como bem destaca Genival Veloso, “é preciso desarmar as pessoas de um certo preconceito de que todo resultado atípico e indesejado no exercício da medicina é de responsabilidade do médico”[1].
Em sentido semelhante, Miguel Kfouri Neto aponta para o desaparecimento da “figura cordial do ‘médico da família’, amigo e camarada – em quem se depositava confiança irrestrita e contra quem jamais se cogitaria intentar uma ação”[2].
Se antes o processo era algo dominado apenas por advogados, curiosamente, os médicos passaram a compreender o rito e instrumentos processuais. Em não raras oportunidades, eu, na qualidade de advogado, fui surpreendido pelo conhecimento dos médicos sobre os meandros do processo, chegando a discutir as teorias defendidas pelo autor/paciente, gratuidade judiciária e o passo-a-passo de uma ação indenizatória.
Dentro dessa perspectiva de judicialização da Medicina, podemos observar múltiplos cenários:
- Judicialização da Medicina por atendimento médico particular;
- Judicialização da Medicina por atendimento médico na Saúde Suplementar;
- Judicialização da Medicina por atendimento em saúde prestado diretamente pelo Estado;
- Judicialização da Medicina por atendimento através da Saúde Complementar;
O presente texto tem a pretensão de debater a ausência de uma resposta definitiva que sirva de parâmetro jurisprudencial sobre a Judicialização da Saúde Complementar.
Se o texto constitucional é categórico na defesa do Direito à Saúde como um direito fundamental e que deve ser prestado pelo Estado, nos termos do art. 196, também garante que a assistência em saúde seja prestada de forma direta pela iniciativa privada, através da Saúde Suplementar, bem como através da Saúde Complementar, esta mediante contrato ou convênio, conforme art. 199, § 1º da CF.
Distinguir a Saúde Complementar da Saúde Suplementar mostra-se fundamental para estabelecer o sistema de legitimidade de responsabilização que será aplicado. A Saúde Complementar é aquela que complementa e preenche a assistência à saúde quando o Estado não pode efetivar de forma direta e imediata o direito social. Na saúde complementar, o Estado, se valendo de particulares, garante o direito à saúde aos cidadãos e remunera os prestadores de serviço. Já a Saúde Suplementar é aquela que acresce, vai além da efetivação do Direito à Saúde garantido no texto constitucional sob a perspectiva pública.
No regime de Saúde Suplementar, as regras aplicadas estão centradas no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil, estabelecendo-se, nas hipóteses de responsabilidade decorrente de suposto erro do profissional, a possibilidade de reconhecer a responsabilidade solidária entre o profissional e a Operadora de Plano de Saúde, exigindo-se, de toda forma, a necessidade de comprovação de culpa.
Já a responsabilidade decorrente de erro profissional no âmbito estritamente público está centrada no princípio da dupla garantia, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 940:
“A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”
Ou seja, não há, a teor do tema 940 do STF, possibilidade de solidariedade ou direcionamento acerca da legitimidade passiva nas ações indenizatórias decorrentes de supostas falhas causadas por médico no serviço público.
O STF pacificou a matéria e estabeleceu o princípio da dupla garantia em que o particular prejudicado por uma assistência médica deve demandar ao Estado e não ao profissional. Essa teoria está estabelecida na premissa de que o causador do dano não foi o agente público, mas, primariamente, o Estado, posto que o usuário de saúde não procura o profissional em si, ante o princípio da impessoalidade, mas procura o Estado. Ademais, o servidor não presta o serviço em nome próprio, mas através e em nome do serviço público.
Desta forma, o particular supostamente prejudicado deve demandar em face do Estado e, na eventualidade de condenação, este pode ingressar com uma ação de regresso em face do agente público causador do dano. Assim, o particular não teria a legitimidade de buscar sua “vingança privada”, na medida em que o seu dano deve ser reparado pelo Estado.
Litigar contra o particular permitiria a realização de acordos indevidos, pois o profissional mensurará os possíveis danos decorrentes de uma litigância, ainda que frívola e indevida. O dano reputacional é mensurado pela parte demandada como estímulo à composição.[3]
Aqueles que buscam demandar ao particular em detrimento do Poder Público visam “fugir” da morosidade das demandas propostas em desfavor do Estado, considerando o maior volume de ações nas Varas de Fazenda Pública, além das prerrogativas processuais em benefício da Fazenda como prazos e juros moratórios diferenciados, exigência de reexame necessário e a submissão ao regime de precatórios. Desta forma, litigar em face do particular ao invés do Estado poderia ser processual e estrategicamente benéfico. Todavia, o tema 940 vedou essa possibilidade.
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que os entes públicos são figuras legítimas para responder por danos ocorridos em hospital privado conveniado, conforme REsp 1388822. No entanto, o debate persiste no tocante à responsabilidade do médico atuante na saúde complementar: aplica-se a possibilidade de demanda direta, e até solidária, como ocorre na Saúde Suplementar, ou aplica-se a regra da dupla garantia exigida no âmbito do serviço público tradicional?
A jurisprudência não possui uma resposta concreta e dominante sobre a matéria. Uma parcela da jurisprudência entende que o tema 940 do STF é extensível à Saúde Complementar, enquanto que uma outra parcela rejeita a aplicação do tema, pois o STF teria tratado exclusivamente da prestação direta de serviços públicos de saúde.
Apesar de respeitar a resistência em aplicar o Tema 940 na Saúde Complementar, entendo que esta é infundada. A tese fixada no tema 940 não faz nenhuma discriminação se o serviço é prestado diretamente pelo Estado ou através da Saúde Complementar, pelo contrário, faz referência apenas à figura do agente público.
Considerando que a Constituição não define propriamente a figura do agente público, é possível se socorrer do Código Penal e a Lei de Improbidade, respectivamente, para utilizar os conceitos e definições que poderiam ser aplicados ao cenário da responsabilidade civil na saúde complementar:
Funcionário público
Art. 327 – Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
§1º – Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.
Art. 2° Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior.
O médico atuante no serviço público mediante contratação/convênio é um agente público/funcionário público, conforme regras estabelecidas no Código Penal e Lei de Improbidade. Apesar da Lei de Improbidade e a Lei Penal possuírem um viés garantista e de natureza ultima ratio, negar a dupla garantia e a ilegitimidade do médico ser diretamente demandado seria permitir a aplicação da Lei de Improbidade e a Lei Penal, logo, normas de natureza qualificada e extraordinária, e ainda uma responsabilidade civil “ordinária”, ou seja, dois pesos e duas medidas.
O médico teria o pior dos dois mundos para fins de responsabilidade, pois seria considerado agente público para fins penais e improbidade, porém não seria agente público para fins de responsabilidade civil, o que se mostra, no mínimo, paradoxal.
Ademais, o fato do serviço ser prestado diretamente pelo Estado ou mediante contratação/convênio não desnatura que o serviço é prestado pelo Sistema Único de Saúde, de modo que a responsabilidade primária recai sobre o Estado, admitindo-se, por outro lado, uma eventual ação de regresso.
Pensar de forma diversa é reconhecer que o serviço prestado no âmbito da saúde complementar é distinto da saúde prestada diretamente pelo Estado, apesar de ambos os serviços serem prestados através do SUS, conforme art. 7º da Lei 8080/90 (Lei Orgânica da Saúde):
Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
Logo, serviços privados contratados ou conveniados são SUS e, enquanto serviços públicos, devem ser regidos pelas prerrogativas, princípios, deveres e direitos aplicáveis ao serviço público.
Destarte, compreendo que o Tema 940 é suficiente para compreender a ilegitimidade do médico supostamente causador do dano para responder por ação proposta diretamente pelo usuário de saúde no âmbito da saúde complementar, de modo que a divergência jurisprudencial e a ausência de um norte claro e específico sobre o tema poderão gerar prejuízos incomensuráveis aos litigantes, posto que a demanda poderá ser proposta em face de parte ilegítima, possibilitando potencial prescrição do direito. Desta forma, mostra-se fundamental que os tribunais Superiores como STF e STJ apresentem uma resposta rápida e expressa para dirimir o debate, de modo que haja um tratamento isonômico para os agentes públicos atuantes no SUS, seja o serviço prestado em unidade pública ou privada.
[1] FRANÇA, Genival Veloso. Comentários ao Código de Ética Médica. 7 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2019. p. 61-62
[2] KFOURI NETO, Miguel. A responsabilidade civil do médico. Revista dos Tribunais, vol. 654, p.57-76, 1990. p.58
[3] PATRÍCIO, Miguel Carlos Teixeira. Análise Econômica da Responsabilidade Civil Médica. Lisboa: AAFDL Editora, 2017. p.89