A Antônio José Carvalho da Silva Filho.
I
Entre os séculos XV e XVIII se procede a uma reviravolta completa do questionamento filosófico. Substitui-se o esquema homem-coisa pelo esquema sujeito-objeto. Mais: instala-se a primazia desmedida do sujeito sobre o objeto, da subjetividade sobre a objetividade, da interioridade sobre a exterioridade, do conhecer sobre o ser, da gnosiologia sobre a ontologia, da mente sobre a matéria. Em outras palavras, a centralidade do ego cogito o faz acreditar que ele é o omni– ou um co-constituinte do real, que o sujeito cria individualmente o todo ou uma parte do objeto conhecido, que o «eu-penso» não se limita a se apropriar da realidade, mas «apropria»-a determinando-a pensativamente. No entanto, o crescimento acentuado do sujeito kantiano da Modernidade acaba por provocar uma compreensão tumultuada do real. Afinal, tantos são os sujeitos cognoscentes, tantas são as compreensões subjetivas sobre a realidade cognoscível, sem que possa haver um fio comum que as atravesse. Ou seja, há a fundação de uma comunidade babelina e, com ela, o relativismo exacerbado e o desaparecimento do senso comum. Aliás, talvez esta seja «a» doença de nosso tempo: a HIPERINFLAÇÃO DA SUBJETIVIDADE (para um excelente excurso sobre o sujeito da Modernidade, v., e. g.: PEREIRA, Mateus Costa. O caráter mítico do livre convencimento motivado (segunda parte)... <https://emporiododireito.com.br/leitura/20-o-carater-mitico-do-livre-convencimento-motivado-segunda-parte-em-defesa-da-intersubjetividade-na-re-construcao-fatico-juridica>).
No direito, por exemplo, a luta contra a doença subjetivista tem sido dramática. Isso porque juízes e doutrinadores – como sujeitos da Modernidade que são – resistem em aceitar que deles independa totalmente o direito, que o direito não é um ens fictionis intra mentis. Não suportam que o direito esteja fora deles e que, por isso, não sejam capazes de lhe imprimir «melhoramentos». Não entendem que o direito se revela na inter-subjetividade jurídico-comunitária, não na intra-subjetividade judiciário-individual. Divisam-se como sujeitos imodestos acima do real. São submissores, não submetidos. Por isso, submetem o ὄντος do direito à γνώσης dos que o interpretam-aplicam. Não se constrangem mais pelas tradições histórico-constitucional, histórico-legislativa, histórico-doutrinária e histórico-jurisprudencial. Levam a consequências tresloucadas a separação abissal entre texto normativo e norma jurídica; de um extremo a outro, empreendem uma marcha instrumental quase sempre ditada por um inconfesso «projeto político-racionalista dinamizador». Abandonam-se a uma fantasia ilimitada, que renuncia ao contato com a realidade externa do direito. De um lado, a «ditadura dos juízes», que se enlameiam em voluntarismos, decisionismos, psiquismos, sentimentalismos, justiceirismos, populismos, discricionariedades, arbitrariedades etc.; de outro, o «despotismo esclarecido dos doutrinadores», imersos num nível infantilóide de intelectualidade, que ignora a distinção entre os modelos prescritivos, normativos ou de lege ferenda [plano do ego], e os modelos descritivos, positivos ou de lege lata [plano da realidade]. Pior: ante a incapacidade de desvelar a linguagem pública do direito na intersubjetividade do debate aberto, cada jurista se torna uma ilha incomunicável de sentido. Em consequência, a comunidade babelina dos intérpretes-aplicadores, ávida por uma última palavra que os salve do caos mental, se curva aos entendimentos transcendentais dos tribunais, em especial dos tribunais superiores (as impropriamente chamadas «cortes de vértice»). Tudo isso como se a linguagem opaca dos legisladores pudesse ser superada pela linguagem não menos opaca dos julgadores, como se os julgadores concursados e nomeados tivessem mais legitimidade democrática que os legisladores eleitos. Ou seja, a doutrina se reduz à condição diminuta de «secretária da jurisprudência». Rebaixa-se a um discurso científico subsidiário, subalterno ou de segunda mão. Deixa de constranger a jurisprudência para se deixar constranger por ela. Daí a necessidade premente de se devolver a autossuficiência existencial ao direito, apesar dos seus intérpretes-aplicadores. É preciso, enfim, que eles se livrem do «sentimento primitivo de onipotência», que lhes provoca a sensação de que o direito é uma realidade «somente em mim», uma realidade «mental».
II
No âmbito processual, o problema axial é o controle do juiz como sujeito solipsista da Modernidade. Afinal de contas, o processo se presta a isto: proteger o cidadão dos eventuais abusos do juiz. E, não raro, o agigantamento do juiz viciado em si mesmo o faz crer que ele é «a» condição sobre-humana de possibilidade existencial do processo [«porque penso o processo, ele existe»]. Fá-lo crer que determina, no todo ou em parte, a vitória de quem tenha razão, o objeto em si a ser discutido, o peso das provas, a estrutura procedimental e o direito a se aplicar. Fá-lo crer, enfim, que a parte com razão não tem autossuficiência para vencer, que as partes não têm autossuficiência para constituir apropriadamente o objeto do processo, que as provas não têm autossuficiência valorativa sem a livre avaliação judicial, que o procedimento legal não tem autossuficiência para disciplinar adequadamente o debate, que o direito não tem autossuficiência para se aplicar sem se completar ou se corrigir pela vontade do juiz. Todas as partes constituintes do processo seriam simples partícipes da mente pensante do juiz. Em alguma medida, o juiz as fundaria. O processo lhe seria uma experiência interior pessoal intransferível. Por isso, para se erradicar o sentimento oceânico primário de que o processo só acontece no juiz e a ele pertence, é preciso impor-lhe os deveres rigorosos de: a) não interferência no desempenho que as partes livremente tem para a própria vitória [= dever de não tomar parte de qualquer dos sujeitos do processo]; b) não interferência no thema disputandum que as partes livremente constituem para si e que para ele consistirá no thema decidendum [= dever de não tomar parte no objeto do processo]; c) não interferência no peso que as provas trazem consigo mesmas [= dever de não tomar parte na força probante dos «elementos de convicção»]; d) não interferência no procedimento estabelecido em lei [= dever de não tomar parte da configuração procedimental]; e) não interferência desconstrangida no conteúdo dos textos de direito positivo aplicáveis ao caso [= dever de não tomar parte no direito processual, ou no direito material processualizado].
A esse dever jurídico de não tomar parte na realidade do processo, de não comparticipar dela, de não lhe ser proprietário, respeitando-lhe a externalidade, se dá o nome de dever de (esforço por) imparcialidade ou neutralidade. A palavra imparcialidade significa isto, pois: impartialidade, im-parte-alidade, não-parte-da-realidade. Do mesmo modo a palavra neutralidade: neutro vem do latim neuter, composto de ne [negação] + uter [pronome relativo que vale por «um ou outro», significando «nem um nem outro» e designando, portanto, aquele que não toma partido, posição, parte na realidade. Nesse sentido, imparcialidade e neutralidade são sinônimos. A distinção entre eles – tão em voga entre «gente cult da vanguarda neoiluminista» – é inteiramente falsa. Daí existirem, pelo menos, cinco tipos de dever de (esforço por) imparcialidade ou neutralidade judicial: a) IMPARCIALIDADE ou NEUTRALIDADE SUBJETIVA [= dever do juiz de se constranger pelos modos de atuação que as partes elegeram livremente para a própria vitória, ainda que no íntimo lhe pareçam equivocados ou fadados ao insucesso]; b) IMPARCIALIDADE ou NEUTRALIDADE OBJETIVA [= dever do juiz de se constranger pelos temas que as partes constituíram livremente para si como objeto do debate, ainda que no íntimo lhe pareçam insuficientes] (obs.: o adjetivo objetiva vai aí em sentido estrito, referindo-se apenas ao objeto do processo; na verdade, toda imparcialidade é objetivante, pois tende a desgarrar o objeto das determinações inexas e anexas que lhe são infligidas pelo sujeito); c) IMPARCIALIDADE ou NEUTRALIDADE VALORATIVO-PROBATÓRIA [= dever do juiz de se constranger pela força intrínseca que as provas têm, ainda que no seu íntimo as valore de modo diverso]; d) IMPARCIALIDADE ou NEUTRALIDADE PROCEDIMENTAL [= dever do juiz de se constranger pela rigidez procedimental instituída na lei, ainda que não lhe pareça a mais adequada às particularidades do caso concreto e à natureza da relação jurídica de direito material controvertida]; e) IMPARCIALIDADE ou NEUTRALIDADE NORMATIVA [= dever do juiz de se constranger pelas normas jurídicas aplicáveis ao caso, ainda que no íntimo lhe pareçam injustas ou mal editadas] (o que, num estado constitucional de direito democrático, decorre da separação de poderes).
III
É impossível, porém, ser absolutamente imparcial ou neutro. Afinal, é difícil suplantar os caprichos presunçosos do ego, seja o ego superficial inteligível, seja principalmente o ego profundo, indômito às prescrições disciplinares do pensamento metódico. Além disso, é impossível subjugar plenamente o conjunto dos arcabouços pré-compreensivos (convicções próprias, preferências individuais, impulsos, intuições, desejos, medos, iras, aflições, sentimentos, opinião pública, pressão social, preconceitos de classe, crenças religiosas, ideologia político-social, senso de moralidade, propensões teórico-científicas, interesses pessoais corporativos, palpites etc). Daí por que a imparcialidade judicial é o resultado de um embate, de um empenho, de uma tentativa, de uma façanha, de um esforço [gr.: προσπάθεια; lat.: conatus; al.: Bemühung; ing.: effort; fr.: effort; it.: sforzo; esp.: esfuerzo]. Ela decorre de um ESFORÇO DE OBJETIVAÇÃO e, portanto, de um ESFORÇO POR OBJETIVIDADE. Nesse sentido, imparcialidade judicial é o grau de objetividade com a qual atua o sujeito judicante. É a medida da judicância objetiva. Trata-se do produto final de um esforço demasiadamente grande para que os cinco aspectos fundamentais do processo – a atuação dos sujeitos do processo, o objeto do processo, a força das provas, o procedimento da lei e o direito aplicável – não sejam deformados pelo juiz, mas sejam tomados por ele como partes constituintes de uma realidade externa sobre a qual não pode intervir. Assim, a imparcialidade do juiz não é uma «virtude», nem um «estado anímico privilegiado», nem uma «condição especial de espiritualidade», nem uma «consciência supraempírica depurada». Não se trata de uma «qualidade inata» (cf. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo – primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 120). Na verdade, o caminho em direção à imparcialidade judicial sempre tende a uma incompletude. É uma terra inexplorada quase sempre só à vista. O produto final desse empreendimento, não raro, é semielaborado, imperfeito, mal-acabado, quando não malogrado. É impossível promover no juiz uma «consciência bacteriologicamente asséptica». É inviável alcançar um «grau zero de parcialidade», uma «imparcialidade absoluta», um «ambiente de pura objetividade», uma «isenção completa de pressuposições». Enfim, não se pode elidir a estrutura prévia (posição prévia, visão prévia, concepção prévia) adstrita à circunvisão do juiz. Aliás, há o risco de que a luta por uma imperturbabilidade plena faça dele um apático indiferente ao mundo exterior.
Logo, no quotidiano forense quase só se vê uma IMPARCIALIDADE POSSÍVEL, VIÁVEL, FACTÍVEL ou PRATICÁVEL. Ainda assim, a imparcialidade total não deixa de ser um ideal. O esforço por ela nunca é vão. É o que os anglófonos chamam de worthwhile endeavor [«esforço que vale a pena»]. No final das contas, só julga bem quem sabe se manter fora do jogo. Por isso, esse esforço não pode ser modesto nem desambicioso, ainda que condenado a um fracasso parcial. Nesse sentido, essa luta prestadia pelo inatingível faz do imperativo de imparcialidade uma AGONÍSTICA. O esforço agônico da imparcialidade na relação do juiz com as partes, com o thema disputandum, com o peso das provas, com o procedimento legal e com o direito aplicável é «a» condição para romper com a propensão de investir no que é de seu «interesse». Uma renúncia a esse esforço implicaria uma renúncia a qualquer tentação de o juiz se servir de sua raison éclairée para intervir no resultado do processo coadjuvando a parte que lhe apetece, manipulando o objeto das discussões, valorando distorcidamente a prova, flexibilizando o procedimento estabelecido na lei ou corrigindo a regra de direito que o desagrada. Trata-se de esforço que, colocando o juiz em uma certa distância, lhe propicia uma visão mais global e, portanto, o afasta de uma visão redutora que no interior do processo possa eventualmente ter de qualquer de suas partes constituintes. Nesse sentido, a empresa pela imparcialidade judicial – ainda que nem sempre exitosa ou só exitosa parcialmente – é imprescindível. A alcançabilidade problemática da isenção total não é salvo-conduto para se encorajarem o subjetivismo sistêmico, o apadrinhamento metódico, a «parcialidade positiva». Fogo que se necessita apagar se amaina com água, não se aviva com mais fogo. Nesse sentido, um dos princípios estruturantes de qualquer regime processual sobre imparcialidade judicial é, por exemplo, a precaução: havendo suspeita de que determinada ação possa causar quebra de imparcialidade judicial, a ação não deve ter lugar, ainda que inexista consenso científico irrefutável sobre essa causação. Na dúvida, não se corre o risco de ver quebrada a imparcialidade do juiz. O juiz que se declara suspeito porque se sente «simplesmente desconfortável ou indisposto» em julgar determinado caso não pode ser visto pelo tribunal sempre como um preguiçoso. Ademais, é preciso redobrado cuidado com doutrinas vanguardistas, que, distinguindo indevidamente imparcialidade de neutralidade, condenam «quebras de imparcialidade», absolvem «quebras de neutralidade» e, com isso, toleram o arbítrio como bandeira.
IV
(a) A IMPARCIALIDADE SUBJETIVA pressupõe esforço por neutralidade judicial em relação às partes do processo. Trata-se da concepção clássica de imparcialidade. É a imparcialidade judicial propriamente dita, tomada em seu sentido mais estreito. Está representada simbolicamente pela venda que cobre os olhos da deusa da mitologia romana JUSTITIA. Ora, o juiz é um terceiro e, portanto, um alheio às partes e um estranho ao debate que elas travam. Não lhe importa quem vencerá nem quem perderá. São-lhe indiferentes os interesses em jogo e quem os titulariza. É-lhe também indiferente a maneira como cada parte diligencia por satisfazer o interesse próprio, ou de quem faça as vezes. O juiz não se perturba com a identidade das partes, nem com o modo de atuação em juízo que elegem para si. Não se interessa pela estratégia arruinada da parte que lhe pareça ter razão, nem pela estratégia exitosa da parte que lhe pareça não ter. Não se empolga com os sucessos daquele com quem simpatiza, nem com os insucessos daquele com quem antipatiza. Somente pode – quando muito – lamentar em segredo as condutas estéreis da parte à qual se inclina e as condutas fecundas da parte à qual não se inclina. As suas preferências e as suas repulsas íntimas não se podem externar em atos de privilegiamento nem de perseguição funcional. Aliás, não se podem simplesmente externar. Nem se podem igualmente externar as preferências ou as repulsas íntimas de outrem, que o pressione. O juiz nada pode fazer para ajudar, nem para atrapalhar. O benefício de uma parte implica o prejuízo reflexo da outra; o prejuízo de uma parte implica o benefício reflexo da outra. O juiz não pode auxiliar a parte que prefere [= prestar socorro, amparar, ajudar, retirar da própria sorte]. Tampouco pode embaraçar a parte que pretere [= causar estorvo, impedir, dificultar, atirar ao azar]. Na verdade, deve desauxiliar indistintamente a uma e outra [= retirar o socorro, desamparar, não ajudar, abandonar à própria sorte]. Sublinhe-se: não auxilia [= ação ou comissão com carga positiva], nem embaraça [= ação ou comissão com carga negativa], mas desauxilia [= inação ou omissão, «ação» com carga zero, «ação» neutra]. Daí se nota que toda quebra de imparcialidade subjetiva – na verdade, toda quebra de imparcialidade tout court – é uma ação; logo, não existe «parcialidade por omissão», tal como sugeria JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA (Os poderes do juiz. O processo civil contemporâneo. Curitiba: Juruá, 1994. p. 95: «Eu prefiro ser parcial atuando, a ser parcial omitindo-me»).
Aliás, seria ideal que no juiz não nascessem polarizações por vontade sua nem de outrem. Logo, para evitar a tentação ou a pressão de tomar as dores, de se sentir doído e, em consequência, de coadjuvar ou perturbar qualquer das partes, o juiz não pode, por exemplo: ter interesse jurídico, moral ou econômico no desfecho da causa; ter conexões fortes de afeição, aversão ou envolvimento profissional com qualquer das partes ou dos advogados (ascendente, descendente, cônjuge, companheiro, noivo, namorado, amante, amigo íntimo, inimigo, sócio etc.); ter predisposição, antipatia ou preconceito por qualquer das partes ou dos advogados em razão de raça, cor, nacionalidade, religião, sexo, orientação sexual, idade, estado civil, ideologia política, status socioeconômico, grau de escolaridade etc.; sofrer interferências nem pressão interna ou externa, direta ou indireta, de ordem política ou técnica, para beneficiar ou prejudicar qualquer das partes; ser corrupto; criar atritos que o indisponham contra qualquer das partes ou dos advogados; integrar órgão cuja competência não tenha sido definida ex ante facto por critérios impessoais e objetivos estabelecidos em lei, impedindo-se assim nomeações ad hoc que visem favorecer ou perseguir qualquer das partes; permanecer no processo caso não queira, não possa ou não consiga ser imparcial. Esforço por neutralidade subjetiva é exatamente isto, pois: empenho para haver desinteresse por quem deva vencer ou perder a disputa; contenção para que nenhuma das partes seja (des)prestigiada pelo juiz; luta pela autossuficiência da parte na autodeterminação da sua vitória ou da sua derrota, apesar do juiz; freio para que a atividade do juiz seja determinada pela performance das partes, mas a boa ou má performance de qualquer das partes não seja determinada pelo juiz.
V
(b) A IMPARCIALIDADE OBJETIVA pressupõe esforço por neutralidade judicial em relação ao objeto do processo. Sendo o processo garantia constitucional contrajurisdicional de liberdade [freedom = liberdade positiva = autonomia individual] e de «liberdade» [liberty = liberdade negativa = não interferência externa], as partes têm autonomia para constituírem para si o objeto do seu debate, aportando aos autos os seus fundamentos de fato, fundamentos de direito, pedidos, argumentos e provas, sem que ao juiz seja dado imprimir adições, alterações ou supressões a esse corpus dialético. Afinal, por força da primazia da liberdade sobre a autoridade, as partes têm liberdade e poder, mas o juiz só tem poder, não liberdade. Nesse sentido, a imparcialidade objetiva implica repartição clara, equilibrada e precisa de funções entre juiz e partes, posto não se tratar de repartição aleatória. É função exclusiva das partes invocar fundamentos de fato e de direito, construir argumentos mediante a articulação entre fundamentos de fato e de direito, deduzir pedidos desde esses argumentos e confirmar os seus fundamentos de fato mediante provas [= thema disputandum]; em contrapartida, é função exclusiva do juiz decidir sobre todo esse corpus dialético dele independente [= thema decidendum]. Nem mesmo fundamento de inconstitucionalidade se pode introduzir ex officio. Não vige no Brasil uma regra como o artigo 93, IV, da Constituição da Grécia de 1975 [«Os tribunais são obrigados a não aplicar uma lei que seja contrária à Constituição»]. Logo, ao juiz não se imputa o mister de ponderar sobre a constitucionalidade de todas as normas que se lhe invocam. Ante a separação de poderes (que é princípio originário) e a pressuposição de constitucionalidade das leis (que é princípio derivado), mesmo a decretação de inconstitucionalidade com pedido expresso da parte é excepcional, pois entrechoca juiz e legislador; logo, ainda mais excepcional é a decretação de inconstitucionalidade ex officio. Há de se respeitar a liberdade da parte: a) que, no exercício da sua autonomia, renuncia tácita ou expressamente à ação ou à exceção fundada no direito constitucional; ou b) que, conquanto não haja renunciado, não invoca o fundamento constitucional porque, no desempenho calculado de estratégia legítima, prefere aguardar-lhe uma melhor acolhida jurisprudencial, reservando-o para eventual segunda ação caso vencida na primeira. Quando muito se admite que o juiz introduza oficiosamente matérias de ordem pública, desde que previstas na lei em rol claro, discreto e taxativo (v. nosso Processo e razões de Estado. <https://emporiododireito.com.br/leitura/36-processo-e-razoes-de-estado>).
Portanto, as partes constituem o a priori da atividade cognitiva do juiz, o algo sobre o qual o juiz tem de se debruçar. Em termos hohfeldianos, as partes são titulares conjuntas do poder formativo de gerar o objeto do processo [power]; o juiz, de um correlato estado de mera sujeição [liability]. Em contraposição, o juiz é titular do poder de decidir sobre o objeto do processo [power]; as partes, de um correlato estado de mera sujeição [liability]. Por isso, ser imparcial em sentido objetivo significa, para o «eu-do-juiz», circunscrever-se às suas tarefas específicas, obedecer à repartição de funções, não usurpar função exclusiva dos «outros-que-são-as-partes» (portanto, não produzir ex officio fundamentos de fato, fundamentos de direito, pedidos, argumentos e provas que as partes não produziram). Esforço por neutralidade objetiva é precisamente isto, pois: empenho para haver desinteresse por quais devam ser o thema disputandum e, consequentemente, o thema decidendum; contenção para que o objeto do processo não seja omniconstituído nem coconstituído pelo juiz; luta pela autossuficiência existencial do objeto do processo, apesar do juiz; freio para que a atividade do juiz seja determinada pelo objeto do processo, tal como plasmado pelas partes, mas que o objeto do processo não seja determinado pelos tirocínios do juiz. Por isso, a imparcialidade objetiva tem como condição necessária o cumprimento cabal de deveres jurídicos cogentes como a adstrição [= o juiz deve estar vinculado estritamente aos pedidos formulados pelas partes], a congruência [= o juiz deve estar vinculado estritamente aos fundamentos invocados pelas partes], o diálogo [= o juiz deve estar vinculado estritamente aos argumentos que as partes articularam para relacionar os fundamentos invocados aos pedidos formulados] e a dispositividade [= o juiz deve estar vinculado estritamente às provas produzidas pelas partes]. Introdução de elemento inédito per officium iudicis – sem que haja qualquer petição das partes – é introdução nula e, por conseguinte, ineficaz.
VI
(c) A IMPARCIALIDADE VALORATIVO-PROBATÓRIA pressupõe esforço por neutralidade judicial em relação ao peso da prova. A força probante é valor objetivo, que se compreende na intersubjetividade, não valor puramente subjetivo. É valor in-erente à prova, que se revela no debate, não valor ad-erente concebido pelo juiz. É carregada pela própria prova, não atribuída pelo juiz. Mana de dentro para fora, não de fora para dentro. É dado in-trínseco prospectável, não ex-trínseco imputável. Não se trata de resultado de uma «operação mental». Intermediada pela linguagem que a exprime, acontece na prova em si, não na mente do juiz (cf., v. g., OLIVEIRA, Rafael Tomaz de, STRECK, Lenio Luiz. Como exorcizar os fantasmas do livre convencimento e da verdade real. <https://www.conjur.com.br/2017-jun-24/diario-classe-exorcizar-fantasmas-livre-convencimento-verdade-real>). A ele compete apenas esforçar-se para reconhecer o peso que a prova traz consigo, dialogando com os argumentos que as partes articularam ao redor do problema, não constituir unilateralmente esse peso no todo ou em parte. Contudo, a objetividade da força probante e a intersubjetividade para o seu desvelamento nem sempre foram o a priori da dogmática processual. 1) Na infância da ciência probatória, adotou-se o sistema de convicção íntima imotivada [a prova é pós-valorada pelo juiz segundo critérios não externados ou simplesmente secundum conscientiam]; 2) na adolescência, o sistema de tarifação legal [a prova é pré-valorado pela lei]; 3) na juventude, o sistema de convicção racional fundamentada ou «livre convencimento motivado» [a prova é pós-valorada discricionariamente pelo juiz mediante a externação de critérios racionais construídos ex post factum]. Mas é preciso avançar. Afinal de contas, o terceiro sistema – cuja importância histórica foi inconteste – ainda tem restos detríticos do primeiro, pois ainda reserva ao juiz uma «margem individual de liberdade de valoração subjetiva», que não é erradicada pela motivação per se. É preciso que a ciência probatória adentre a maturidade e que a prova seja pós-valorada vinculativamente pelo juiz mediante a externação de critérios racionais intersubjetivamente compartilhados construídos ante causam (o que não impede, aqui e ali, pré-valorações pela própria lei). É preciso livrar-se de expressões como «convicção», «convencimento», «juízo de certeza», «juízo de probabilidade», «juízo de aparência», «juízo de verossimilhança», juízo de dúvida», como se fossem perturbações intrapsíquicas provocadas pelo contato do juiz com a prova. É preciso, enfim, despsicologizar o peso probatório.
Têm sido malogradas as tentativas de valorar toda e qualquer prova dentro de um mesmo tratamento teórico. Até hoje não se conseguiu uma criteriologia totalizante unificadora. Todavia, não se pode desistir do trabalho paciente de descobrir e sistematizar os fatores de flutuação do peso das espécies probatórias nas diferentes situações da vida quotidiana. Vários já são os estudos, e. g., sobre pautas de valoração da prova testemunhal (v., p. ex., FENOLL, Jordi Neiva. La valoración de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2010, p. 223-229), ou mesmo sobre os atributos lógico-epistêmicos cuja análise rigorosa permite determinar a credibilidade de um testemunho (v., p. ex., SILVA, César Augusto Higa. Hacia un análisis lógico-epistémico de la prueba testimonial… Revista peruana de derecho procesal. v. 1. 2009, p. 53-71). Por isso, para se superar de fato o «livre convencimento motivado», não basta à lei que o revogue simpliciter et de plano ac sine strepitu et figura iudicii: é necessário constranger-se o juiz por pautas, critérios ou standards – instituídos por lei ou, ao menos, desenvolvidos pela doutrina – que em diálogo com as partes lhe permitam desocultar o peso da prova. Por outro lado, a neutralidade valorativo-probatória não implica apenas apreender a prova com peso, mas também desprender-se da prova sem peso. Aqui, não se trata de prova sem força inerente, mas com força inerente que foi bloqueada. É o exemplo da prova ilícita. No Brasil, bloqueia-se-lhe totalmente a força ex vi constitutionis [CF/1988, art. 5º, LVI]. Entretanto, não raro, o juiz que tem contato com prova ilícita elucidativa: a) eficaciza-a discricionariamente; ou b) embora a exclua, passa a perseguir o mesmo resultado prático da reinclusão, b.1) seja ordenando provas substitutivas de ofício, b.2) seja supervalorizando as provas sub-incriminatórias remanescentes. Daí por que, nesse caso, se deve excluir por quebra de imparcialidade o juiz que se contaminou. Melhor: deve-se ad cautelam isolá-lo antes que a quebre, pois é sobre-humano exigir que ignore prova esclarecedora, posto que ilícita. Da mesma forma, deve-se isolar o juiz que haja colhido a prova oral para que não dê valor subjetivo ao que sequer tem valor objetivo (gestos, tom de voz, gaguejo, sudorese, tremor etc.), reservando-se a sentença, assim, a outro juiz. Esforço por neutralidade valorativo-probatória é isto, pois: não dar valor subjetivo ao que já tem valor objetivo, não dar valor subjetivo ao que não deve ter valor objetivo, não dar valor subjetivo ao que sequer tem valor objetivo. Com isso se percebe que, a rigor, a imparcialidade valorativo-probatória está compreendida na imparcialidade objetiva: subvalorização judicial de peso probatório equivale, na prática, a supressão probatória per officium iudicis; da mesma forma, supervalorização judicial de peso probatório equivale, na prática, a adição probatória per officium iudicis. Mesmo assim, há conveniência didática em se destacar esse modo específico de imparcialidade objetiva.
VII
(d) A IMPARCIALIDADE PROCEDIMENTAL pressupõe esforço por neutralidade judicial em relação ao procedimento da lei. Na expressão «devido processo legal», cada termo tem positividade jurídica. «Devido» = obrigatório; «processo» = procedimento em contraditório; «legal» = da lei. Assim, «devido» + «processo» + «legal» = procedimento em contraditório cujas etapas estão previstas always under law e cuja interposição é obrigatória na relação juiz-jurisdicionados. Não se presta a tutela jurisdicional senão mediante o transcurso de um procedimento legal em contraditório. Não pode haver, pois, devido processo «infralegal» (editado, v. g., por regimento interno de tribunal, decreto, resolução, portaria, instrução, circular, aviso), nem «extralegal» (editado, v. g., por decisão individual e concreta de juiz ou tribunal). O procedimento decorre da omni-lateralidade previsível da lex, tal como compreendida na intersubjetividade do debate processual, não da uni-lateralidade imprevisível do iudex. O artesão procedimental é o legislador (o «outro»), não o juiz (o «eu»). A fonte ejetora do modus procedendi perante o Poder Judiciário é o Poder Legislativo, não o próprio Poder Judiciário. Só o Poder Legislativo pode eventualmente particularizar o procedimento em função do direito material aplicável em busca da «tutela jurisdicional adequada». Quando muito se admite que as próprias partes celebrem negócio jurídico constitutivo de procedimento, já que – como garantia individual que é – o processo serve a elas e somente a elas. A comissão de licitação deve fiel observância ao pertinente procedimento licitatório estabelecido na lei, não podendo em nome da eficiência flexibilizá-lo arbitrariamente para lhe imprimir deturpações, abreviações ou dilações. Da mesma forma, por exemplo, a comissão de concurso público em relação ao procedimento seletivo, a comissão disciplinar em relação ao procedimento administrativo punitivo, as casas parlamentares em relação ao procedimento legislativo e os juízes em relação ao procedimento em juízo. Nenhum quid distintivo há na função judicante que lhe franqueie tamanho alvedrio. Quando o juiz psicologizado refigura, desfigura ou transfigura unilateralmente a modalidade procedimental padrão, ele pratica uma intrépida negativa serial de vigência a vários dispositivos; afinal, um procedimento sempre se define por vários dispositivos cuja sequência redacional obedece à sequência temporal dos atos que elas regulam. Invariavelmente, nessa negativa de vigência no atacado, o juiz não se desincumbe do pesado ônus argumentativo de demonstrar que os textos definidores do procedimento são inconstitucionais, ou devam ser interpretadas conforme a Constituição.
Por isso, a flexibilização procedimental per officium iudicis, para além de inconstitucional, é multi-ilegalidade de uma só vez, num único jato. Pior: caracteriza grave afronta à separação de poderes, pois o juiz exerce um micropoder paralegislativo casuístico autoatribuído para definir o formato procedimental atípico que lhe apraz. Como se não bastasse, pressupõe temerariamente que o juiz tenha poderes sobrenaturais para se sintonizar às particularidades do caso e adaptar o iter processualis em função delas. Além disso, é preciso frisar que, sendo o processo proteção contra arbítrio jurisdicional, o procedimento é arquitetado in abstrato como um algoritmo rígido cuja estrutura cadenciada tende a refrear tecnicamente no juiz impulsos como automatismos, emocionalismos, associativismos, estereotipias, paralelismos e baixa autovigilância; logo, quando o juiz maleabiliza esse regime rezando a cartilha da economia, surge o risco de que a força garantista do processo possa ser por ele despotenciada in causa sua, livrando-o de suas amarras e capturando o processo para si. Noutras palavras: a flexibilização procedimental oficial pode servir de pretexto a que o processo, que é garantia de liberdade a serviço do jurisdicionado, se desnature em instrumento de poder – quando não de dominação – a serviço da jurisdição. Daí por que esforço por neutralidade procedimental é isto: empenho para haver desinteresse por qual deva ser o procedimento; contenção para que o juiz não se arvore em artífice procedimental; luta pela autossuficiência do procedimento legal na regulação sequencial do debate, apesar do juiz; freio para que a atividade do juiz seja controlada pelo procedimento da lei, mas o procedimento da lei não seja controlado pelo juiz.
VIII
(e) A IMPARCIALIDADE NORMATIVA pressupõe esforço por neutralidade judicial em relação ao direito aplicável. Direito é feito de matéria-prima textual (oral ou escrita). O texto é ponto de partida e vetor orbital para a coordenação do juiz dentro do seu espaço ocupacional. Nesse movimento, o juiz se orienta pelos referenciais semântico-pragmáticos do texto e, indefectivelmente, pela tradição dentro da qual o texto de insere (tradições constitucional, legislativa, doutrinária, jurisprudencial etc.). Sem isso, o texto se tornaria mero ponto de partida para um voo cego, fora de controle. Sem isso, enfim, não haveria como impedir o juiz de investir na «interpretação» que lhe «interessa», criando, alterando ou suprimindo textos segundo seu senso particular de justiça. Quando excede o texto sem se constranger minimamente por seus limites semântico-pragmáticos e pela tradição dentro da qual está mergulhado, o juiz se apropria do direito. Deixa de só aplicá-lo para também editá-lo. Não se cinge a só interpretar um texto, mas a esquematizar outro (que será distinto do texto original, ou o próprio texto original «corrigido», «atualizado» ou «piorado»). Porém, o direito independe do concurso exclusivo do juiz. Não se trata de «produto da interpretação individual de um sujeito psicologizado» (COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da norma jurídica. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 33). Poucos levaram isso tão a sério como PONTES DE MIRANDA, que diferençava incidência [= realização da norma pela mera ocorrência do seu preceito primário] de aplicação [= imposição da norma pela vontade do juiz, ainda que não lhe tenha ocorrido a incidência]. O texto é sempre algo em si. Tem alteridade. Tem coisidade. É realidade externa, que antecede tanto o juiz quanto a interpretação que ele faz do texto. Portanto, o texto sempre tem alguma coisa a dizer sem que o juiz diga totalmente por ele. O sentido se expressa – também e principalmente – pelo texto, não exclusivamente «pelo» juiz «apesar» do texto. O sentido se expressa não só pelo intérprete [subjetividade absoluta], nem apenas pelo texto [objetividade absoluta], mas pelo intérprete e mormente pelo texto [objetividade relativa], sem que a adição de sentido pelo intérprete seja arbitrária. Embora a obra-de-interpretação-do-texto [= norma] nem sempre coincida com a própria obra-do-texto-interpretado [= texto], esse desalinhamento não pode configurar ruptura. A polissemia do texto não permite ao juiz «escolher» qualquer dos sentidos possíveis, nem inventar um sentido outro: a tradição constrange a interpretação, erradica a opacidade textual e, em consequência, elimina os sentidos «incorretos» ou «inadequados». Nesse caso, as interpretações lógico-gramatical, teleológica, histórico-evolutiva e sistemática não são propriamente «métodos» (que são prius), mas estados finais da própria interpretação (que são posterius).
Por isso, o texto jamais poderá ter duas interpretações distintas igualmente válidas, salvo se decorrerem de «margem de liberdade» dada pelo próprio texto; se duas interpretações forem distintas ao arrepio de qualquer «margem», uma delas será inválida, quando não as duas; ainda assim, cada um dos dois esforços interpretativos terá sua própria dignidade (que é a dignidade, p. ex., que destaca cada doutrinador). Afinal, a dignitas specifica da produção de um texto não está na produção em si, mas no seu resultado (que é o próprio texto); em contrapartida, a dignitas specifica da interpretação de um texto está na interpretação em si, não no seu resultado (que é a norma). Por tudo isso, vê-se que, embora texto não seja norma pronta e acabada, tem normatividade incompleta, embora haja completude a caminho. Sem normatividade, o texto não teria prescritividade, não dispondo de força sequer para obrigar o juiz. Se texto e norma fossem coisas radicalmente distintas, o juiz estaria «vinculado» a um dado pré-, quase-, proto– ou cripto-normativo. Não estaria obrigado a partir apenas ou, ao menos, também do texto. Isso acabaria por criar um abismo entre texto e norma. O juiz poderia produzir norma pessoal, divorciada dos determinantes do texto. Nesse sentido, concretizar-se-ia o obstinado projeto do sujeito kantiano: a norma aplicável seria co- ou omni-constituída por ele.
Daí se nota que um distinguo radical entre texto e norma provoca, ao menos, duas ordens de problema. Em primeiro lugar, admitindo-se somente uma «prescritividade post factum», trasladar-se-ia o direito objetivo da lei à jurisprudência, transformando o Estado parlamentar num Estado judicial e, assim, a democracia numa aristocracia. Em segundo lugar, rejeitando-se a prescritividade ante factum, atirar-se-ia o texto numa indefinição ontológica e, assim, numa marginalidade teórica. Afinal, não se saberia qual o estatuto ontológico do texto. Tratar-se-ia de «pré-norma», «quase-norma», «proto-norma», «cripto-norma», «indiferente não tematizável» ou coisa outra? Para além da norma jurídica, do fato jurídico e da situação jurídica, a teoria do direito haveria de abraçar o texto normativo como quarta categoria fundamental? Daí a necessidade de esforço por uma neutralidade normativa. Ela consiste no desinteresse por qual deva ser a norma a se aplicar, na fidelidade canina à Constituição e à lei, na contenção do juiz para que não imprima adições, alterações nem supressões que escapem aos limites endógenos e exógenos do texto. O direito tem autossuficiência existencial, apesar do juiz.
IX
Há uma interligação indissolúvel entre as partes constituintes da realidade do processo e, em consequência, entre os cinco modos de imparcialidade judicial. Eles são indestacáveis. Assim como i) as partes, ii) o objeto do processo, iii) o peso das provas, iv) o procedimento legal e v) o direito aplicável são componentes funcionalmente interconectados de uma mesma unidade estrutural, a mesma interconexão reticular se dá entre as imparcialidades i) subjetiva, ii) objetiva, iii) valorativo-probatória, iv) procedimental e v) normativa. Entretanto, essa interligação não é total, mas parcial. Na verdade, ela obedece a uma topologia estelar: a imparcialidade subjetiva é o polo central ou concentrador; as imparcialidades objetiva, valorativo-probatória, procedimental e normativa são os polos periféricos. Em outras palavras, a imparcialidade subjetiva se enlaça às imparcialidades objetiva, valorativo-probatória, procedimental e normativa; no entanto, as imparcialidades objetiva, valorativo-probatória, procedimental e normativa não se enlaçam entre si. Mais: esse enlace é full-duplex. Tudo isso significa que: 1) a quebra de imparcialidade subjetiva tende a produzir a quebra das imparcialidades objetiva, valorativo-probatória, procedimental e normativa [IS → IO + IV + IP + IN]; 2) a quebra de imparcialidade objetiva, valorativo-probatória, procedimental ou normativa tende a produzir a quebra de imparcialidade subjetiva [IO → IS; IV → IS; IP → IS; IN → IS].
1) Quando o juiz é interessado na vitória ou na derrota de uma das partes [= quebra antecedente de imparcialidade subjetiva], ele é atentado a tomar parte: 1.1) no objeto do processo, introduzindo de ofício fato, fundamento jurídico, argumento, pedido ou prova que robusteça a ação ou a exceção [= propensão à quebra consequente de imparcialidade objetiva]; 1.2) no peso da prova, supervalorizando prova que beneficie a parte preferida, ou desvalorizando prova que beneficie a parte preterida [= propensão à quebra consequente de imparcialidade valorativo-probatória]; 1.3) no procedimento, produzindo contra legem sequência de atos tendenciosa, que facilite a atuação do preferido ou dificulte a atuação do preterido [= propensão à quebra consequente de imparcialidade procedimental]; 1.4) no direito aplicável, interpretando livremente o direito – sem qualquer constrangimento externo pela tradição – em favor de uma parte ou em desfavor do seu adversário [= propensão à quebra consequente de imparcialidade normativa]. Ou seja, em todos esses casos, o juiz apodera-se intrasubjetivamente da realidade do direito, priva-a de qualquer compreensão intersubjetiva e reelabora-a fantasticamente no crisol da sua própria consciência tendenciosa.
2) Em contrapartida: 2.1) quando o juiz introduz de ofício fato, fundamento jurídico, argumento, pedido ou prova [= quebra antecedente de imparcialidade objetiva], ele auxilia a parte que tinha o ônus de introduzir; 2.2) quando o juiz supervaloriza ou desvaloriza prova [= quebra antecedente de imparcialidade valorativo-probatória], ele beneficia ou prejudica a parte a quem a prova interessa; 2.3) quando o juiz flexibiliza de ofício o procedimento da lei [= quebra antecedente de imparcialidade procedimental], ele beneficia ou prejudica a parte cuja atuação ganhou, respectivamente, maior facilidade ou maior dificuldade; 2.4) quando o juiz faz interpretação criativa do texto liberta de qualquer tradição [= quebra antecedente de imparcialidade normativa], ele prejudica a parte que confiou no texto e na tradição e, portanto, beneficia a parte que apostou temerariamente contra eles. Ou seja, em todos esses casos, o juiz desequilibra a disputa, ainda que sem dolo de privilegiamento ou perseguição, tomando parte reflexamente na vitória do autor ou do réu [= quebra consequente de imparcialidade subjetiva].
Como se percebe, o arranjo reticular estelar que estrutura a inter-relação das imparcialidades subjetiva, objetiva, valorativo-probatória, procedimental e normativa se presta a isto: impedir que o juiz – por vontade própria ou alheia – manipule o resultado do julgamento. Em última análise, essa é a ratio essendi de todo o direito processual e, por conseguinte, dos seus diversos desdobramentos procedimentais (civil, trabalhista, penal comum, penal militar, eleitoral, tributário etc.). Ela nada tem a ver com a «descoberta da verdade» para a «realização da justiça» (objetivos que, ao fim e ao cabo, sempre degradam o juiz em um manipulador). Não sem razão, no Brasil, o processo (o «devido processo legal») consta do rol das garantias constitucionais do cidadão em juízo [CF/1988, artigo 5º, LIV].
X
É fácil entender que, sendo a imparcialidade o resultado de uma agonística, acabe ela por ser a arqui-inimiga da VANGUARDA, que pretende «mudar a estrutura do real» pelo voluntarismo judicial. Por Vanguarda se entenda a doutrina neoiluminista que – defendendo pautas «progressistas» não-, sub– ou semi-atendidas pelos poderes legislativo e administrativo – procura realizá-las à margem de qualquer debate democrático, apostando em formas experimentais de jurisdição (que passa a usurpar autoritariamente as funções legislativa e administrativa) e, portanto, de processo (que se desnatura de garantia de liberdade do jurisdicionado em instrumento da jurisdição na busca de seus escopos antitradicionais). Com isso se nota que entre ativismo judicial e instrumentalismo processual existe mais do que uma afinidade eletiva: existe uma autêntica conjugação funcional. Além do mais, ambos defluem da mesma fonte originária-originante: o projeto antirrealista do sujeito ensimesmado da Modernidade. Nesse sentido, os vanguardistas sãos os assistentes técnico-jurídicos a serviço desse projeto reformista.
- i) Contra o imperativo da imparcialidade ou neutralidade subjetiva, a cruzada vanguardista fantasia uma separação total entreimparcialidadee neutralidade: i.i) reduzindo as «quebras de imparcialidade» a simples hipóteses de impedimento e suspeição; i.ii) inserindo essas hipóteses em um rol taxativo, discreto, simplório, superficial, fragmentário, descontínuo, casuístico, assistemático, coletado sensitivamente a esmo e cheio de particularidades; i.iii) tolerando como «meras e irreprimíveis quebras de neutralidade» os atos justiceiros de favorecimento não enquadrados formalmente em qualquer dessas hipóteses. ii) Contra o imperativo da imparcialidade ou neutralidade objetiva, a cruzada vanguardista enfraquece a separação entre atos de parte e atos de juiz, permitindo ao juiz espessar o objeto do processo – como se parte fosse – mediante a introdução oficiosa de pedidos não formulados, de normas de direito material não invocadas [iura novit curia], de fatos não afirmados, de argumentos não articulados e de provas não produzidas [inquisitivismo probatório, hoje maquilado por uma acoplagem alopoiética de feição epistemológica]. iii) Contra o imperativo da imparcialidade ou neutralidade valorativo-probatória, a cruzada vanguardista defende um modelo de valoração discricionária da prova arredio a qualquer racionalidade ante causam intersubjetivamente compartilhada. iv) Contra o imperativo da imparcialidade ou neutralidade procedimental, a cruzada vanguardista inventa a possibilidade de flexibilização procedimental per officium iudicis, desautorizando a sequência estabelecida pelo legislador e permitindo ao juiz inventá-la casuisticamente; v) Contra o imperativo da imparcialidade ou neutralidade normativa, a cruzada vanguardista: v.i) forja um distanciamento extremado entre texto normativo e norma jurídica; v.ii) estabelece para a marcha de um extremo a outro, quando não um niilismo metodológico, um projeto político inconfesso imune a qualquer controle intersubjetivo; v.iii) permite ao juiz – com base numa pseudometodologia – criar «princípios constitucionais implícitos insólitos» prêt-à-porter (em geral, que atendam às pautas vanguardistas); v.iv) permite ao juiz suprimir ou modificar a norma infraconstitucional inconveniente, que supostamente esteja em desconformidade com os aludidos princípios, ou aplicá-los per saltum; v.v) funda uma «cultura de panconstitucionalização», submetendo todo o direito e as autonomias pública e privada a um controle geral e irrestrito pela jurisdição constitucional; v.vi) aparelha a cúpula da jurisdição constitucional com pensadores vanguardistas; v.vii) debilita, por conseguinte, a separação legislador-juiz, mesclando nomocracia com telocracia, Estado parlamentar legislativo com Estado de jurisdição constitucional; v.viii) faz com que o direito objetivo decorra não só da Constituição e da lei, mas do compósito Constituição + lei + jurisprudência.
Em suma, o lema do iluminismo judiciocrático está na frase de JEAN CRUET: «O juiz é na realidade a alma do processo jurídico, o artífice laborioso do direito novo contra as fórmulas caducas do direito tradicional» (A vida do direito e a inutilidade das leis. Lisboa: José Bastos, 1908, p. 26). Como se vê, é uma aposta forçada no juiz como o σπουδαῖος de ARISTÓTELES, o aufgeklärter Kritiker de KANT, o Übermensch de NIETZSCHE. Contudo, é preciso cautela nessa aposta: procedendo-se ao controle da realidade, não raro se produz realidade fora de controle.