Na profundeza interior dos fenômenos, está o centro; na camada exterior, a periferia. Aqui, sobrejaz a complexidade contigente do múltiplo; ali, subjaz a simplicidade essencial do uno. Pois a ciência pós-moderna do direito é isto: periférica. Navega o movimento superficial da contingência. Por conseguinte, assim é a ciência atual do direito constitucional. Nela, vigora uma superficialidade metodológica na análise das instituições jurídico-políticas. Exemplo crasso é o estudo dogmático-constitucional do MINISTÉRIO PÚBLICO. A doutrina especializada – bastante escassa, diga-se – tece considerações isoladas e particularizadas sobre cada atribuição ministerial prevista na Constituição Federal de 1988 [art. 127, caput; art. 129, I a IX], sem divisar entre elas qualquer entrelaçamento. Não raro, essas considerações estão presas a exegeses parafrásticas e transcrições doutrinário-jurisprudenciais. Entretanto, elas são prolixas, rasas, tópicas e fragmentárias. Dentre a variedade (aparentemente) desordenada e dividida de funções constitucionais do Ministério Público, não sabem ascender a uma função originária, sólida, estável e absoluta, que transcenda todas as demais, que esteja sobrepensada nelas, que as abarque qualitativamente em si mesma e da qual todas elas derivem. Não têm o olhar intelectivo para um fundamento último, inescrito, que explique «a» ratio essendi do Ministério Público, que o organize e que lhe constitua um modelo ou paradigma institucional permanente. São incapazes de captar uma «atribuição-μονάδα», uma «atribuição atribuidora», que seja um elemento comum e, portanto, um Angelpunkt para as demais. Enfim, não despertam para o supremo grau do conhecimento clássico, que é a descoberta da «unidade na multiplicidade» [η ενότητα μέσα στην πολλαπλότητα]. Logo, não passam de uma elaboração intelectual inútil, que se perde em minudência.
Decididamente, tem faltado à constitucionalística brasileira uma visão sinóptica do Ministério Público, que: a) resuma-o num princípio-fonte; b) posicione-o com exatidão no concerto político-institucional do País; c) garanta-lhe um estatuto claro; d) propicie-lhe uma compreensão doutrinário-jurisprudencial coerente; e) facilite o controle externo dos seus atos pelos cidadãos; f) oriente internamente a atuação funcional dos seus membros no quotidiano profissional; g) sirva de diretriz para eventuais futuras reformulações institucionais. Essa penúria jurídico-dogmática sobre o MP tem a sua razão de ser: «[…] los orígenes tan poco claros y las obvias finalidades políticas – que no jurídicas – que se tuvieron en miras al crear la institución la han convertido en el tema menos estudiado por los autores de la materia» (VELLOSO, Alvarado. Sistema procesal: garantía de la libertad. t. I. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2009, p. 431). Não obstante, é possível entrever um «invariante» no confuso inventário de atribuições do MP brasileiro, um dado funcional imutável, que lhe defina a essência e para o qual a ciência jurídica ainda não despertou. A tarefa não é fácil, dado que tanto no Brasil como no exterior o MP é tido como uma «figura proteiforme» (AROCA, Juan Montero. Proceso (civil y penal) y garantía. Valência: Tirant lo Blanch, 2006, p. 642) e, consequentemente, proteiformes são as reflexões dogmáticas que sobre ele se produzem. Dessa maneira, a consulta à doutrina especializada não é um ponto de partida seguro.
II
Uma estratégia de abordagem para se fazer aparecer o fundamento último do Ministério Público é a compreensão do processo – do «devido processo legal» – como garantia de liberdade [CF, art. 5º, LIV]. Por um lado, garante-se à parte a liberdade [freedom] de decidir pelo que entende e pelo que lhe convém, podendo autodeterminar-se por sua própria vontade e, a partir dela, escolher autonomamente os seus comportamentos no processo; por outro lado, todas essas escolhas, próprias à atividade de parte, se devem fazer sem qualquer interferência do juiz, i. e., com «liberdade» [liberty], pois o juiz é alheio, não-parte, im-parte, impartial, imparcial, neutro. Nesse sentido, o processo se faz mediante uma divisão equilibrada de papéis: o juiz não se arvora nas liberdades da parte, nem lhes controla o exercício; a parte não se arvora nos poderes do juiz, posto que lhes controle o exercício (para um aprofundamento do tema, v. nosso Processo: garantia de liberdade [freedom] e garantia de «liberdade» [liberty] <https://emporiododireito.com.br/leitura/processo-garantia-de-liberdade-freedom-e-garantia-de-liberdade-liberty>). A fortiori, tendo as partes a liberdade de provar os fatos por elas alegados como fundamento [liberdade = freedom], não pode o juiz reduzir-lhes a «liberdade» [«liberdade» = liberty] produzindo prova de ofício como se parte fosse. O juiz descairia em partialidade [= condição de quem é parte] e, portanto, em parcialidade [= condição de quem toma partido].
No âmbito procedimental civil, v. g., se o autor não prova o fato constitutivo do direito que deveras tem, há a improcedência do pedido; por outro lado, se o autor prova o fato constitutivo do seu direito, mas o réu não prova o fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do autor, há a procedência do pedido. Isso mostra que a tutela jurisdicional civil favorável de mérito tende a realizar direitos subjetivos [facultas agendi], não propriamente o direito objetivo [norma agendi]. O julgamento contra quem tem razão não se coaduna com a aplicação correta da lei. Todavia, isso não significa que o subsistema procedimental civil sempre denegue cuidado ao direito objetivo. A lei pré-exclui determinadas causas da autonomia exclusiva da parte; nelas, impõe a presença oficial do MP [ex.: Lei 6.015/1973, artigos 57, 58, parágrafo único, 67, 68, § 1º, 69, § 2º, 76, 97, parágrafo único, 109, 200, 274, 284; Lei 9.507/1997, art. 12; Lei 10.257/2001, art. 12, § 1º; Lei 12.016/2009, art. 22; CPC, art. 178, I a III, 948; Código de Águas, art. 149, I]. «Na defesa da ordem jurídica» [= na defesa do direito objetivo] [CF, artigos 127, caput, e 129, IX], o MP pode produzir provas, requerer medidas processuais pertinentes e recorrer [CPC, art. 179, II]. Ou seja, a lei elege as causas excepcionais em que, apesar das partes, se deve velar pelo exato cumprimento da Constituição e da lei.
Sem essa explicação garantístico-processual, a atividade do MP aparentaria um inútil bis in idem, tendo em vista que ao juiz já compete a aplicação do direito objetivo. Nesse sentido, o artigo 736 da CLT é cirúrgico quando diz que o Ministério Público do Trabalho tem «por função zelar pela exata observância da Constituição Federal, das leis e demais atos emanados dos poderes públicos, na esfera de suas atribuições». Enfim, faz-se do MP um custos legis [= «fiscal da lei» = «zelador da ordem jurídica» = «CURADOR DO DIREITO OBJETIVO»]. Segundo RENATO RORDORF, em editorial ao fascículo 1/2018 da revista trimestral Questione Giustizia, «la funzione di tutela del diritto oggettivo affidata al pubblico ministero risalta ancor più evidentemente quando egli interviene nel processo civile. In una contesa che vede contrapposte due o più parti private, ciascuna portatrice di un proprio interesse individuale, la presenza del pubblico ministero è indice sicuro della rilevanza pubblicistica della vicenda» (<http://questionegiustizia.it/articolo/l-editoriale-del-n-12018_08-05-2018.php>). Em idêntico sentido STF, Pleno, ADI-MC 758/RJ, rel. Min. Celso de Mello, RTJ 154/426: «A qualificação do Ministério Público como órgão interveniente defere-lhe posição de grande eminência no contexto da relação processual, na medida em que lhe incumbe o desempenho imparcial da atividade fiscalizadora pertinente à correta aplicação do direito objetivo».
Nesses casos, por exemplo: 1) se o autor não prova o fato constitutivo do seu direito, o MP pode prová-lo, evitando a injusta improcedência; 2) se o réu não prova o fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do autor, o MP pode prová-lo, evitando a injusta procedência; 3) se o autor prova o fato constitutivo do seu direito, o MP pode recorrer da injusta improcedência; 4) se o réu prova o fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do autor, o MP pode recorrer da injusta procedência; 5) se o juiz aplica norma de direito material que não incidiu porque interpretou mal o texto normativo pertinente, ou porque interpretou texto normativo impertinente, o MP pode recorrer da injusta decisão, ainda que a parte interessada não recorra; 6) se o juiz injustamente profere sentença definitiva em lugar de terminativa, ou sentença terminativa em lugar de definitiva, pode o MP apelar, ainda que a parte interessada não apele [obs.: mesmo em processo que envolva interesse de capaz (CPC, art. 178, II), o MP pode provar contra o incapaz e contra ele recorrer, desde que isso seja necessário à correta aplicação do direito objetivo]. Frise-se que «injusto» se usa aqui em sentido estritamente formal [injustiça formal = discrepância entre a norma incidente sobre o caso e a norma aplicada pelo juiz = aplicação incorreta do direito objetivo; justiça formal = coincidência entre a norma incidente sobre o caso e a norma aplicada pelo juiz = aplicação correta do direito objetivo]. Assim sendo, o MP é o paladino da justiça formal (jamais da justiça material!). Sublinhe-se, ademais, que ele não zela apenas pela aplicação escorreita do direito objetivo material, mas também do direito objetivo processual. Interessa-lhe erradicar tanto o error in iudicando quanto o error in procedendo.
III
O processo serve ao cidadão em juízo como garantia individual [CF/1988, art. 5º, LIV], não ao Estado-juiz como instrumento de poder (v. nosso O processo como instituição de garantia. <https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia>). Logo, a tutela jurisdicional civil favorável de mérito tende a realizar o direito subjetivo, não o direito objetivo. A correta aplicação da legalidade estatal sobre a «verdade verdadeira» dos fatos – conquanto desejável – é um traço acidental, não essencial do sistema. Assim, a presença do Ministério Público como custos legis deve ser EXCEPCIONALÍSSIMA. Rege-se por um princípio de intervenção mínima ou de seletividade. Isso porque se injeta no procedimento civil um quê pontual de autoridade. Procura-se conciliar a tutela do direito subjetivo afirmado pelo autor com a salvaguarda do direito objetivo posto pelo Estado, intrometendo-se no debate inter partes o presentante de um órgão público, que é estranho à relação jurídica de direito material controvertida e que não guarda com ela qualquer vínculo de prejudicialidade-dependência. Ressalte-se, contudo, que o MP cuida do ordenamento jurídico do Estado [«lo Stato-ordinamento», segundo VEZIO CRISAFULLI], não necessariamente do próprio Estado [«lo Stato-soggetto»]: «a participação da Fazenda Pública não configura, por si só, hipótese de intervenção do Ministério Público» [CPC, art. 178, parágrafo único]. Na verdade, é a advocacia pública que cuida dos direitos subjetivos estatais; do direito objetivo estatal [= «ordem jurídica»] cuida o Ministério Público. Por isso, possível dizer que: a) a maior presença do MP como «fiscal da ordem jurídica» aumenta no processo a nuança autoritativa; b) a menor ou nenhuma presença do MP como «fiscal da ordem jurídica» densifica no processo o primado da liberdade das partes. In extremis: i) a «omni-presença» do MP caracterizaria um sistema procedimental civil puramente publicista; ii) a «omni-ausência» do MP caracterizaria um sistema procedimental civil puramente privatista.
No procedimento civil da extinta U.R.S.S., «el juez no es el garante de unos inexistentes derechos subjetivos de los ciudadanos», mas «del exacto cumplimiento de la legalidad socialista» (AROCA, Juan Montero. La paradoja procesal del siglo XXI: los poderes del juez penal (libertad) frente a los poderes del juez civil (dinero). Valência: Tirant lo Blanch, 2014, p. 39); logo, não sem motivo o Ministério Público soviético – a Prokuratura [Прокурату́ра] – tinha a faculdade de intervir em toda e qualquer causa civil (cf., por exemplo, TEREBILOV, V., POUTCHINSKI, V. K. e TADEVOSIÁN, V., Princípios de processo civil da U.R.S.S. e das Repúblicas Federadas. trad. Soveral Martins. Coimbra: Centelha, 1978, p. 87-89). Em contrapartida, a Comissão Europeia para a Democracia através do Direito (a «Comissão de Veneza»), órgão consultivo do Conselho da Europa sobre questões constitucionais, adotou em sua 85ª sessão plenária, realizada nos dias 17 e 18 de dezembro de 2010, o European standards as regards the independence of the judicial system: part II – the prosecution service, cuja Recomendação n. 25 estabelece que o Ministério Público deve ter como foco principal a atuação penal, não civil («The prosecution service should have its primary focus on the criminal law field» (<https://www.venice.coe.int/webforms/documents/default.aspx?pdffile=CDL-AD(2010)040-e>). Nesse sentido, fundado na primazia da liberdade sobre a autoridade, é possível dizer que o procedimento civil brasileiro é um sistema preponderantemente privatista, mas não puro: somente nas raras hipóteses previstas em lei o MP intervém como curador do ramo da legalidade aplicável ao caso. Ainda assim, a criação do Ministério Público é uma maneira inteligente de tutelar o direito objetivo sem afetar a inércia funcional do juiz [ne iudex procedat ex officio] e, portanto, a sua imparcialidade. ENRICO TULLIO LIEBMANN, em sinal de respeito à imparcialidade judicial, propunha a presença no procedimento civil de um «apposito e distinto organo pubblico requirente ed inquirente» como forma de se evitarem as iniciativas probatórias per officium iudicis (Fondamento del principio dispositivo. Rivista di diritto processuale. n. 15. 1960, p. 565). Afinal de contas, imputa-se a um terceiro interveniente imparcial a missão de atuar probatoriamente em lugar do juiz. Mais: em nome da aplicação correta do direito objetivo, esse terceiro – além de 1) produzir provas relevantes não produzidas pelas partes – pode 2) requerer as medidas processuais pertinentes não requeridas pelas partes e 3) recorrer de decisões injustas de que não recorreu a parte interessada. De lege ferenda, a presença do MP atenderia ao problema do vulnerável mal patrocinado, que propõe demanda alimentícia, educacional, habitacional, previdenciária, assistencial ou de saúde.
IV
Como já dito, a presença do Ministério Público como «fiscal da ordem jurídica» deve ser mínima. No entanto, é preciso melhor entender o objeto dessa minimidade. O Poder Legislativo, não o Ministério Público, é o «juiz natural» da conveniência e da oportunidade de se cuidar do direito objetivo. Cabe ao legislador – não ao promotor, ao Procurador-Geral, ao CNMP ou a quem quer que seja – a escolha das excepcionalidades que justificam a intervenção oficial do MP. Essa escolha se dá ope legis, não ope voluntatis custodis legis. Advém do exercício político de poder legislativo, não da suscitação jurídica de uma prerrogativa ministerial. É lamentável esse «descomedimento legislativo», que infunde a profusão do MP como custos legis no Brasil e, com isso, diminui a autonomia individual das partes no processo. Além do mais, essa presença exagerada do MP em causas civis alheias rouba tempo e energia que se poderiam canalizar em atuações mais estratégicas aos interesses da sociedade. Lembre-se, outrossim, que os órgãos internacionais recomendam o foco do MP na atuação penal. Todavia, a racionalização do ofício ministerial e o enxugamento econômico das hipóteses de intervenção são competência discricionária exclusiva de quem as editou [= legislador], não de quem as deveria observar [= promotor]. Quem investe o MP em funções e quem o desveste delas são «apenas» a Constituição e a lei. A agenda ocupacional quotidiana do MP é heterodefinida omnilateralmente pelos representantes legislativos do povo, não autodefinida unilateralmente pelos próprios membros da carreira.
Portanto, uma vez instituída a causa de intervenção (aqui há exercício de dever funcional, não mera faculdade), ao MP não é dado esquivar, sob pena de se caracterizar INFRAÇÃO À LEI. Pior: praticada justamente por quem tem a missão excelsa de por ela zelar. Daí a inconstitucionalidade da Recomendação do CNMP n° 34, de 05/04/2016, que dispõe sobre a atuação do Ministério Público como órgão interveniente no processo civil e cujo artigo 6º atribui às «unidades do Ministério Público, respeitada a autonomia administrativa e funcional», a disciplina da «matéria da intervenção cível, por ato interno, preservada a independência funcional dos membros da Instituição, sem caráter vinculante, nos termos desta Recomendação» (d. n.). Ora, a esquiva só se justifica se se nega vigência à lei mediante as ressalvas – devidamente fundamentadas – de 1) inconstitucionalidade, 2) caducidade, 3) revogação, 4) não recepção (revogação de lei pré-constitucional por incompatibilidade com a nova Constituição), 5) interpretação conforme a Constituição, 6) nulidade parcial sem redução de texto, 7) inconstitucionalidade com redução parcial de texto ou 8) invocação de norma jurídica implícita pré-excludente da aplicação da lei (sobre hipóteses em que se pode deixar de aplicar uma lei, v. g.: STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista?. Revista Novos Estudos Jurídicos. v. 15. n. 1. jan/abr 2010, p. 171-172). Nisto consiste a independência técnica dos promotores: se eles reputarem motivadamente inválida determinada intervenção como custos legis, não se submeterão a qualquer ato interno (portaria, instrução, ordem de serviço etc.) que a exijam deles. De qualquer modo, em regra, não há independência funcional contra texto legal expresso. Porquanto às vezes se ignora essa máxima, aqui e ali se assiste a comportamentos incoerentes: o MP investindo-se em funções discutivelmente implícitas (ex.: investigar crimes), mas desvestindo-se de funções indiscutivelmente explícitas (ex.: opinar em mandado de segurança); comparecendo a audiências quando é parte, mas ausentando-se delas quando é fiscal da ordem jurídica; atuando como fiscal da ordem jurídica em processo que envolva interesse de incapaz em vara comum, mas negando-se em juizado especial cível.
Decerto é do mandado de segurança que o MP mais se tem eximido. De acordo com o artigo 12 da Lei 12.016/2009, o MP será ouvido após as informações da autoridade impetrada e antes de proferida a sentença. Contudo, não raro, deixa de opinar por não divisar in casu «interesse social e individual indisponível». Olvida-se, porém, que ao MP cabe igualmente «a defesa da ordem jurídica» [= direito objetivo] [CF, art. 127, caput; LC 75/1993, artigos 1º, 5º, I, 6º, XIV; Lei 8.625/1993, art. 1º], devendo «exercer outras funções que lhe forem conferidas por lei, desde que compatíveis com sua finalidade» [CF, art. 129, IX]. Logo, pouco importam a) o ramo do direito que regula a relação jurídica de direito material controvertida, b) a eventual disponibilidade do interesse envolvido, c) o tipo de autoridade pública impetrada, d) a natureza pública ou privada da pessoa jurídica à qual a autoridade se vincula, e) o grau da ilegalidade ou abusividade supostamente cometida, e f) a maior ou menor repercussão social do caso. Impetrado e admitido o writ, o MP deve opinar sobre o meritum causæ, laborando para a correta aplicação do ramo do direito objetivo material aplicável. A ratio legis dessa intervenção ministerial é simples: sendo elidível – em via excepcionalmente expedita – a legitimidade pressuposta do ato público impugnado, quis-se reforçar a probabilidade de aplicação correta do direito objetivo. Por isso, é preciso cautela na interpretação do parágrafo único do artigo 12 da Lei 12.016/2009 e do § 1º do artigo 180 do CPC, que prescrevem o andamento processual sem o parecer do MP caso transcorrido in albis o prazo que lhe fora fixado. Não se concretiza aí a independência funcional do MP (que, como já visto, não o isenta de imposições legais inequívocas), mas a duração razoável do processo (cf., p. ex., RODRIGUES, Marco Antônio dos Santos. Comentários ao novo CPC. 2. ed. Coord. Antonio do P. Cabral et al. RJ: Forense, 2016, p. 301). Prefere-se a continuidade processual ao desfecho – talvez demorado – da recalcitrância ministerial. Aliás, a experiência mostra o acerto da solução, pois o aguardo do impasse prejudica o demandante e, muitas vezes, indispõe entre si o Poder Judiciário e o Ministério Público. Ainda assim, nada impede a responsabilização funcional do promotor por afronta ao art. 43, IV e VI, da Lei 8.625/1993, devendo o juiz oficiar à respectiva corregedoria mediante aplicação analógica do art. 77, § 6º, do CPC (nesse sentido, p. ex.: PEREIRA, Mateus Costa. CPC comentado. Coord. Hélder M. Câmara. São Paulo: Almedina, 2016, p. 291-292; STEFANI, Marcos. Breves comentários ao novo CPC. Coord. Teresa A. A. Wambier. 3. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 624). Interpretação diversa faria do custos legis um extravagante instituto de «beija-mão»: o juiz obrigado a dar vista, o promotor desobrigado a honrar a vista dada.
V
O Ministério Público zela pelo direito objetivo não somente como terceiro interveniente imparcial, mas também como acionante ou autor de ação. Nela, o MP não atua para que o Estado-juiz eventualmente conceda a tutela de um direito subjetivo, mas a tutela de uma INSTITUIÇÃO, i. e., de um segmento temático do direito objetivo. Instituição é uma unidade sistemática, superior, orgânica e viva de normas jurídicas, que regulam entidade [ex.: organizações públicas, escolas, museus], bem [ex.: patrimônios histórico e artístico, patrimônio público e social; meio ambiente], relação [ex.: família, casamento], valor [ex.: lisura das eleições, fé pública, segurança dos registros públicos, veracidade da propaganda, lealdade concorrencial, moralidade pública, probidade administrativa, eficiência dos serviços públicos, bem-estar da criança e do adolescente, importância dos idosos], agrupamento [ex.: comunidades tradicionais, populações indígenas, reminiscências quilombolas], hábito [ex.: tradições, festas, costumes], utilidade [ex.: saúde, esporte, segurança, educação, previdência social, assistência social], norma [ex.: lei, Constituição] ou atividade [ex.: trabalho, livre iniciativa], cuja preservação estrutural e cujo bom funcionamento são essenciais à existência e à identidade de determinada sociedade e ao bem-estar de seus cidadãos (v. nosso Jurisdição constitucional, jurisdição coletiva e tutela de instituições. RePro 244/247-284). No âmbito penal, o conceito correspondente é o de BEM JURÍDICO (cf., v. g., ROXIN, Claus. A proteção dos bens jurídicos como função do direito penal. trad. André Luís Callegari et al. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 18: «[…] são realidades vitais cuja diminuição prejudica, de forma duradoura, a capacidade de rendimento da sociedade e a vida dos cidadãos»). Note-se a similitude das duas noções: quem fala de instituição, privilegia o aspecto normativo do fenômeno; quem fala de bem jurídico, os aspectos fático e valorativo. Ou seja, «instituição» e «bem jurídico» são manifestações do próprio direito objetivo. Tutela de instituição ou bem jurídico implica tutela (de parte) do próprio ordenamento jurídico.
Com razão, portanto, o privatista alemão LUDWIG RAISER, para quem o direito se orienta segundo duas concepções de sistema, que se complementam: 1) a tutela do círculo de atividades da pessoa através da atribuição dos direitos subjetivos («Schutz des Wirkungsbereiches der Einzelperson durch die Zuteilung subjektiver Rechte»); 2) o desenvolvimento e a proteção das instituições que comandam a nossa sociedade, com o aperfeiçoamento dos institutos jurídicos correspondentes, por força do direito objetivo («Entfaltung und Sicherung der unser gesellschaftliches Leben durchziehenden Institutionen durch die Ausbildung entsprechender Rechtsinstitute kraft objektiven Rechts»). Daí se percebe que a tutela jurídica dos interesses não se faz apenas a partir da noção de direito subjetivo [subjektiver Rechtsschutz], mas também de instituição [objektiver Rechtsschutz]; assim, supera-se o velho dogma de que o direito subjetivo é o único elemento para a construção sistemática do direito (Rechtsschutz und Institutionenschutz im Privatrecht. Summum ius summa iniuria. Tübingen: Mohr, 1963, p. 145-167). Dentro desse sistema de tutela do direito objetivo, o Ministério Público desempenha «o» papel primacial.
a) Na esfera procedimental penal, o MP aciona como «cuidador das instituições ou bens jurídicos penalmente tutelados» [CF/1988, art. 129, I; LC 75/1993, art. 6º, V; Lei 8.625/1993, art. 25, III; CP, art. 100, § 1º; CPP, art. 24; CPM, art. 121; CPPM, art. 29; Código Eleitoral, art. 357; Lei 8.038/1990, art. 1º]. b) Já na esfera procedimental civil, aciona como «cuidador das instituições ou bens jurídicos civilmente tutelados», ao redor dos quais gravitam os chamados «interesses difusos», que não são formalmente uma situação jurídica ativa, um «direito subjetivo difuso», mas uma dispersão amorfa de pessoas indeterminadas que se interessam pela tutela jurídica da instituição; na dicção de PONTES DE MIRANDA (Comentários à Constituição de 1967 – com a EC 1/1969. t. I. RJ: Forense, 1987, p. 129) e MARCOS BERNARDES DE MELLO (Teoria do fato jurídico: plano da eficácia – 1ª parte. SP: Saraiva, 2003, p. 74), são «direitos não subjetivados», que não sofrem precisão, localização e individuação rigorosas, e que, por conseguinte, são o próprio direito objetivo [CF/1988, art. 129, III; LC 75/1993, art. 6º, VII; Lei 8.625/1993, art. Lei 8.625/1993, art. 25, IV; Lei 7.347/1985, art. 5º, I; Lei 7.913/1989, art. 1º; Lei 8.429/1992, art. 17, caput; CDC, art. 82, I; Lei 13.146/2018, art. 79, § 3º] (nesse sentido, p. ex., TESHEINER, José Maria. Aplicação do direito objetivo e tutela de direitos subjetivos nas ações transindividuais e homogeneizantes. RBDPro 78, p. 16). c) Na esfera da jurisdição constitucional, aciona como «cuidador da Constituição» (a qual também é uma instituição, uma instituição sobre instituições, uma meta-instituição) [CF/1988, artigos 103, VI, e 129, IV; LC 75/1993, artigos 6º, I a III, e 46, parágrafo único, I; Lei 8.625/1993, art. 25, I; Lei 9.868/1999, artigos 2º, VI, 12-A e 13, IV; Lei 9.882/1999, art. 2º, I]. Em todos esses casos, o MP possui legitimidade autônoma para a condução do processo [selbständige Prozeβführungsbefugnis], não havendo de se falar em «legitimidade extraordinária» ou «substituição processual» (cf. NERY JR., Nelson e NERY, Rosa. Comentários ao CPC. SP: RT, 2015, p. 663); afinal, não se retira a legitimidade ativa da estrutura subjetiva de uma relação jurídica de direito material afirmada em juízo. Além do mais, nessas esferas jurisdicionais, sempre que não seja o autor ou requerente, o MP deve intervir como custos legis [CPP, artigos 29 e 45; CPC, art. 976, § 2º, 991; Lei 7.347/1985, art. 5º, § 1º; Lei 4.717/1965, art. 6º, § 4º; CF/1988, art. 103, § 1º; Lei 8.038/1990, art. 5º, parágrafo único; Lei 9.868/1999, artigos 8º, 10, § 1º, 12, 12-E, § 3º, 12-F, § 2º, 19; Lei 9.882/1999, art. 4º, § 2º; Lei 8.429/1992, art. 17, § 4º; CDC, art. 92]. Aliás, mesmo na esfera administrativa em que se busca a tutela parajurisdicional de instituições, pode o MP intervir como custos legis; é o que se passa, por exemplo, nos procedimentos junto ao CADE para a defesa da concorrência (Lei 12.529/2011, art. 20).
VI
Para além dos planos da 1) unidade e da 2) multiplicidade, há o plano da 3) complementaridade. Nem sempre uma multiplicidade aparentemente desordenada e dividida, que habita determinada realidade, pode ser explicada a partir de uma unidade originária-originante. Por vezes, existem «sobras», «impurezas», que convivem com outros múltiplos contingentes, mas não se explicam a partir de uma unidade essencial; porém, sem esses «detritos», a realidade fica incompleta e porosa. Da mesma forma, aqui e ali existem FUNÇÕES COMPLEMENTARES, que preenchem o conjunto atribucional do Ministério Público, mas que não se extraem da função una primordial. Muitas vezes, imputam-se ao MP funções dissonantes, que nada dizem com a curatela de bens jurídicos, instituições ou fatias temáticas do direito objetivo, e que, em consequência, lhe conferem um certo hibridismo centáurico. São elas: α) a defesa de interesses sociais [CF/1988, art. 127, caput; LC 75/1993, artigos 1º e 5º, I; Lei 8.625/1993, art. 1º] (ex.: ajuizamento de reclamação trabalhista em favor de menor de 18 anos sem representante legal – CLT, art. 793; ajuizamento de ação para a tutela de interesses individuais homogêneos, ainda que disponíveis, de alto relevo social); β) a defesa de interesses individuais indisponíveis [CF/1988, art. 127, caput; LC 75/1993, artigos 1º e 5º, I, e 6º, VII, c e d; Lei 8.625/1993, artigos 1º e 25, IV, a] (ex.: ajuizamento de ação de alimentos internacionais – Decreto Legislativo 10/1958; Decreto 58.826/1965; Lei 5.478/1968, art. 26; ajuizamento de ação de alimentos em favor de criança ou adolescente – ECA, art. 201, III; ajuizamento de ação de investigação de paternidade – Lei 8.560/1992, art. 2º, § 4º); γ) a defesa judicial dos direitos e interesses das populações indígenas [CF/1988, art. 129, V; LC 75/1993, artigos 6º, VII, c, e XI, 5º, III, e, 37, II]; δ) o controle externo da atividade policial [CF/1988, art. 129, VII; LC 75/1993, artigos 9º, 10, 38, IV, 117, II, e 150, IV]. Em (α), (β) e (γ), o MP atua como substituto processual [rectius: pré-processual, pois ainda não há processo quando do ajuizamento] em ações voltadas à tutela de direitos subjetivos; em (δ), como auditor externo operacional. Trata-se de atribuições válidas ex vi constitutionis, não ex vi essentiæ suæ. Destoam da linha mestra que justifica a existência do MP; entretanto, mas espessam o inventário das missões ministeriais, visto que a CF/1988 assim impõe.
Dúvidas podem surgir, porém, quanto à natureza da função de «defensor do povo» ou «provedor de justiça» atribuída ao MP pelo art. 129, II, da CF/1988 («zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia»). Segundo JOSÉ AFONSO DA SILVA, «ao contrário dos doutrinadores, geralmente membros da Instituição, a função de defensor do povo não é compatível com a função de Ministério Público. Não se podem misturar num órgão funções tão díspares. Alguma coisa acabará ficando sacrificada, dando-se relevo àquelas atribuições que tenham mais visibilidade nos meios de comunicação. Isso até já tem ocorrido. […] A função de defensor do povo ou de provedor de justiça não é compatível com estruturas burocráticas, nem com investiduras vitalícias, porque deve ser desempenhada por órgão de confiança da representação popular com investidura a tempo certo» (Comentário contextual à Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 601-602). Realmente, na tradição hispano-americana, o defensor del pueblo é um órgão de controle independente e com autonomia funcional para a promoção da cidadania (recebimento de queixas, petições, notícias de irregularidade e reclamações do público, investigação de injustiças e erros administrativos, defesa dos direitos fundamentais, controle e vigilância da Administração Pública, supervisão da eficiência dos serviços públicos, publicização de críticas e recomendações ao aprimoramento e ao saneamento dos serviços públicos, realização de seminários e campanhas de conscientização em prol da legalidade e da moralidade pública, promoção de audiências públicas etc.), dotado de capacidade de atuar em juízo e fora dele, não raro com imunidades e prerrogativas próprias aos congressistas, cujo ocupante é escolhido pelo Parlamento para mandato com prazo determinado (v., e. g., Constituição argentina de 1995, art. 86; Constituição colombiana de 1991, artigos 178-1, 277-2, 281 a 284; Constituição peruana de 1993, artigos 161 e 162; Constituição equatoriana de 1998, artigo 216; Constituição boliviana de 2009, artigos 162-8 e 218 a 224). Instituições congêneres são também previstas, por exemplo, na Espanha [«Defensor del Pueblo» – Constituição de 1978, artigos 54 e 70, 1, c], em Portugal [«Provedor de Justiça» – Constituição de 1976, art. 23º] e na União Europeia [«Provedor de Justiça Europeu» – Tratado da União Europeia ou Tratado de Maastricht de 1992, art. 138-E]. Como cediço, após resistir contundentemente à criação da Defensoria do Povo durante o processo de elaboração da CF/1988, o MP logrou para si a função, hoje desempenhada pelas famosas «Procuradorias dos Direitos dos Cidadãos» [LC 75/1993, artigos 11 a 26, 42; Lei 8.625/1993, art. 27]. No entanto, segundo os críticos, a função ainda tem sido exercida com baixa desenvoltura (sobre o tema, v., p. ex., BEZERRA, Helga Maria Saboia. Defensor do Povo: origens do instituto Ombudsman e a malograda experiência brasileira. Direito, Estado e Sociedade. n. 36. jan-jun/2010, p. 46-73).
De todo modo, embora desejável que a provedoria de justiça seja encabeçada por um órgão não-ministerial autônomo e independente, isso não desnatura a função: trata-se efetivamente de uma zeladoria de bens jurídicos, instituições ou fatias temáticas do direito objetivo. Na verdade, zela-se por bens jurídicos ou valores institucionais como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, transparência, eficiência, boa-fé, probidade, motivação, não-discriminação, contraditório, proporcionalidade, razoabilidade, urbanidade, duração razoável dos procedimentos administrativos e respeito aos direitos individuais, os quais, uma vez subjetivizados, redundam na disseminação aos cidadãos de garantias contra-administrativas. Ou seja, zela-se pelo segmento do direito objetivo que cuida da chamada «Boa Administração Pública», sem que se promova em juízo a defesa de direitos individuais lesados (sobre o tema, v., p. ex., CARVALHO, Valter Alves. O direito à boa administração. Niterói: UFF [dissertação de mestrado], 2013; TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski e NEVES, Isadora Ferreira. O direito fundamental à boa administração pública e o mito da supremacia do interesse público: os direitos fundamentais como delimitação do interesse público. Revista Jurídica – CCJ. v. 20. n. 41. jan-abr/2016, p. 79-102).
VII
Já se viu que o Ministério Público pode atuar como 1) fiscal da ordem jurídica, 2) acionante civil e 3) acionante penal. No entanto, pode ele ainda atuar como 4) pré-acionante civil e 5) pré-acionante penal. (4) Como PRÉ-ACIONANTE CIVIL, o MP pode instaurar procedimentos para a averiguação de fato determinado, ouvindo testemunhas, realizando inspeções, promovendo diligências investigatórias, solicitando perícias e expedindo notificações a entidades públicas ou privadas para a requisição de certidões, informações e documentos. Como isso, colhem-se elementos para a expedição de recomendações, a celebração de termos de ajustamento de conduta ou o ajuizamento de ação extrapenal [CF/1988, art. 129, III e VI; LC 75/1993, artigos 6º, VII, 7º, I, 38, I, 84, II, 150, I; Lei 8.625/1993, artigos 25, IV, e 26, I]. Pouco importa o nome dado a esses autos («inquérito civil», «procedimento preparatório» etc.): importa ao MP dispor de um procedimento inquisitivo e informal, que viabilize o desempenho pré- ou extra-jurisdicional de suas funções como i) substituto processual [rectius: pré-processual], ii) controlador externo da atividade policial, iii) curador civil de bens jurídicos em geral e iv) «defensor do povo» [= curador civil dos bens jurídicos atinentes especificamente à «boa administração pública»]. Ainda assim, nada impede que, dispondo de peças de informação suficientes produzidas alhures, o MP já possa per saltum tomar providências perante o Poder Judiciário ou fora dele.
Por sua vez, (5) como PRÉ-ACIONANTE PENAL, o MP pode «requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais» [CF/1988, art. 129, VIII; LC 75/1993, artigos 7º, II, 38, II, 117, I, 150, II; Lei 8.625/1993, art. 26, IV]. Por falta de amparos expressos na Constituição e na lei procedimental penal, não pode o MP presidir investigação criminal. A apuração de infrações penais é atribuição exclusiva das polícias federal [CF/1988, art. 144, § 1º, I e IV] e civil [CF/1988, art. 144, § 4º]. E há razão de ser nisso: a) o domínio da ciência e da arte investigatório-criminal não é exigido dos candidatos nos concursos de provas e títulos para ingresso no Ministério Público, nem é transmitido nos cursos de formação de promotores substitutos; b) para se resguardar a imparcialidade da acusação, é desejável que a autoridade investigadora não coincida com a autoridade acionante; c) o MP não dispõe de burocracia operacional – munida, v. g., de quadros auxiliares de investigadores e assistentes técnicos – para a atividade investigativa. Não se nega que a permissão à investigação ministerial é tendência mundial. Ademais, o modelo de investigação policial exclusiva expõe a autoridade policial a pressões, mormente quando os investigados são políticos poderosos. Todavia, é preciso aí reformar a CF/1988, não desprezá-la. Há quem sustente que o poder ministerial de investigação criminal é «poder implícito», que deflui do princípio acusatório. A própria Lei Orgânica do Ministério Público da União [LC 75/1993] confere à instituição o poder de «realizar inspeções e diligências investigatórias» (art. 8º, V).
Sem razão, porém. Ante a primazia da liberdade sobre a autoridade (sobre a aludida primazia, v. nosso Liberdade e autoridade no direito processual: uma combinação legislativa em proporções discricionárias? (ou ensaio sobre uma hermenêutica topológico-constitucional do processo). <https://emporiododireito.com.br/leitura/liberdade-e-autoridade-no-direito-processual-uma-combinacao-legislativa-em-proporcoes-discricionarias-ou-ensaio-sobre-uma-hermeneutica-topologico-constitucional-do-processo>), tem-se que: A) texto sobre garantia do cidadão se interpreta ampliativamente e, por correlação, texto sobre poder do Estado se interpreta restritivamente [princípio da expansão da garantia]; a fim de se superar eventual penúria da Constituição e não haver poder sem contraste, reserva-se às garantias o maior âmbito de aplicação possível e aos poderes o menor; logo, é antirrepublicana, e. g., a chamada «teoria dos poderes implícitos» [inherent powers], que se justifica, quando muito, nas constituições sintéticas (como a Constituição americana de 1787), não nas analíticas (como a Constituição brasileira de 1988); mais republicano é uma teoria das garantias implícitas [ex.: garantias implícitas da proporcionalidade, da razoabilidade, da motivação dos atos administrativos, da presunção de inocência civil ou extrapenal, do duplo grau de jurisdição, do promotor natural, da imparcialidade judicial], que instala o «reino do subentendido» ex parte populi, não ex parte principis; B) texto sobre garantia do cidadão se interpreta para fortalecer a garantia, não o correlato poder do Estado [princípio da maximização da garantia]; logo, não se pode invocar, p. ex., a garantia da proporcionalidade para aumentar os poderes do Estado ao invés de lhe coibir os excessos, a garantia do devido processo legal – sob a roupagem prostituída do «processo justo» – para imputar aos juízes poderes não expressos nas leis procedimentais, a garantia da eficiência administrativa para inchar o Estado mediante a criação de agências reguladoras não expressas na Constituição, a garantia acusatória [nullum iudicium sine accusatione] para conferir ao órgão acusador poderes investigatórios não expressos na Constituição nem na lei procedimental penal.
Errou, portanto, o Pleno do STF no julgamento do RE-RG 593.727/MG (rel. Min. Cezar Peluso, rel. p/ acórdão rel. Min. Gilmar Mendes, j. 14.05.2015, maioria: «O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição»).
VIII
Quando se fala do direito (em sentido) objetivo, fala-se de um sistema normativo subsistente por si próprio, cuja estrutura e cujo conteúdo independem das convicções pessoais dos aplicadores e das circunstâncias individuais dos destinatários. Uma das garantias de respeito à objetividade do direito é a imparcialidade de quem o interpreta-aplica. Ser imparcial é sempre ficar entre a neutralidade asséptica e o subjetivismo voluntarista. Na prática, somente há imparcialidade possível, não «imparcialidade total», «grau zero de parcialidade», «atmosfera pura de objetividade». Nada obstante, o esforço por ela é fundamental. Logo, para exercer com sereno desvelo o mister de zelar pelo direito objetivo, o membro do Ministério Público necessita das garantias da vitaliciedade, da inamovibilidade e da irredutibilidade de subsídios [CF/1988, art. 128, § 5º, I; LC 75/1993, art. 17; Lei 8.625/1993, art. 38]. Além disso, estão vedados: a) o recebimento, a qualquer título e sob qualquer pretexto, de honorários, percentagens ou custas processuais; b) o exercício da advocacia; c) a participação em sociedade comercial, na forma da lei; d) o exercício, ainda que em disponibilidade, de qualquer outra função pública, salvo uma de magistério; e) o exercício atividade político-partidária; f) o recebimento, a qualquer título ou pretexto, de auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei [CF/1988, art. 128, § 5º, II; LC 75/1993, art. 237, III]. Por fim, deve ele: i) não ter interesse jurídico, moral ou econômico no desfecho da causa; ii) não ter conexão de afeição, aversão ou envolvimento profissional com qualquer dos sujeitos do processo (ascendente, descendente, cônjuge, companheiro, noivo, namorado, amigo íntimo, inimigo, sócio etc.); iii) lutar contra predisposição, preferência, antipatia ou preconceito que nutra por qualquer dos sujeitos do processo em razão de raça, cor, religião, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, ideologia política, status socioeconômico, grau de escolaridade etc.; iv) não externar em público predisposição, preferência, antipatia ou preconceito por qualquer dos sujeitos do processo; v) não sofrer interferências nem pressão interna ou externa, direta ou indireta, de ordem política ou técnica, para beneficiar ou prejudicar qualquer dos sujeitos do processo; vi) ser incorruptível e aparentar em sua conduta pública essa incorruptibilidade; vii) tratar os sujeitos do processo com urbanidade e lhaneza, evitando atritos que o indisponham contra eles; viii) integrar órgão com atribuição definida em lei ante factum por critérios impessoais e objetivos, impedindo-se nomeações ad hoc; ix) ser substituído por iniciativa sua ou a pedido do interessado caso não queira, não possa ou não consiga atender às exigências anteriores.
Em suma, o MP deve ser IMPARCIAL (cf. Normas de responsabilidade profissional e declaração de direitos e deveres fundamentais dos promotores, da Associação Internacional dos Promotores, item 3.a: «Los fiscales desempeñarán sus funciones sin temor, favoritismo ni prejuicios. En particular los fiscales deberán desempeñar sus funciones de manera imparcial». <https://www.iap-association.org/getattachment/Spanish/Resources-Documentation/IAP-Standards/UN-Resolution/RESOLUCION_ONU_2008.pdf.aspx>). Imparcialidade é atributo exigível dos exercícios tanto jurisdicional quanto ministerial [LC 75/1993, art. 239; CPC, art. 148, I; CPP, art. 112; CPPM, artigos 57 a 59]. Contudo, aí, o esforço ministerial é muito maior (obs.: note-se que imparcialidade não é «virtude» nem «condição moral», mas resultado – sequer pleno – de um esforço técnico de autocontenção) (sobre o tema, v. nosso Levando a imparcialidade a sério. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 203-204). Afinal de contas, nem sempre o MP é custos legis e, portanto, terceiro ao conflito. Como sujeito acionante, é inevitável que o promotor se enviese. E frequentemente isso ocorre. Por isso, não se pode exigir do promotor o mesmo grau de imparcialidade-neutralidade do juiz. Ainda assim, para se interromper ou diminuir essa contaminação psíquico-cognitiva, recomenda-se, por exemplo, que o promotor pré-acionante não seja o promotor acionante, que entre eles haja uma divisão funcional de tarefas. Em todo caso, é importante que o promotor aja sempre com um padrão mais elevado que um litigante civil (cf. Comissão de Veneza, European standards as regards the independence of the judicial system: part II – the prosecution service, item V.14: «The prosecutor […] must act to a higher standard than a litigant in a civil matter»). Daí por que não lhe compete uma condenação à tout prix. Em nome da tutela de bens jurídicos, instituições ou setores temáticos do direito objetivo, o MP pode: a) como custos legis, atuar contra os fundamentos aduzidos pelas partes ou contra as resoluções do juiz; b) como acionante penal, pedir a absolvição do próprio réu contra quem ofereceu denúncia e recorrer em favor dele (cf. CPPM, art. 54, parágrafo único: «A função de órgão de acusação não impede o Ministério Público de opinar pela absolvição do acusado, quando entender que, para aquêle efeito, existem fundadas razões de fato ou de direito»); c) como acionante civil, pedir o julgamento de improcedência da própria demanda que propôs e recorrer em favor do demandado (em sentido similar: VITORELLI, Edilson. Novo CPC comentado. t. I. Coord. Sérgio L. A. Ribeiro. SP: Lualri, 2017, p. 273). Nisso reside a grandeza do MP, a qual lhe é fundamento para «sentar-se no mesmo plano e imediatamente à direita dos juízes singulares ou presidentes dos órgãos judiciários perante os quais oficiem» [LC 75/1993, art. 18, I, a. Em sentido similar: Lei 8.625/1993, art. 41, XI].
Para alguns, parte imparcial constitui um «disparate lógico» (VELLOSO, Alvarado. Ob. cit., p. 433. Em sentido similar: AROCA, Juan Montero. Proceso penal y libertad. Pamplona: Civitas, 2009, p. 122-123). De qualquer forma, o esforço pela imparcialidade ministerial – ao menos no sistema de direito positivo brasileiro – é imperativo. O ser não desconstitui o dever-ser. A parcialidade comezinha não revoga a imparcialidade ansiada, mesmo que na prática o promotor só atinja uma proto-, para- ou semi-imparcialidade, atuando como um estranho medial entre um «juiz parcial» e uma «parte imparcial». Portanto, que se instituam todos os meios possíveis ao desenviesamento dos promotores (sobre o tema: BURKE, Alafair. Neutralizing cognitive bias: an invitation to prosecutors. NYU Journal & Liberty. v. 2. 2007, p. 512-530). Deixe-se claro que, quando o MP atua como autor exercendo a função acionante [= dever-poder de acionar ante a presença dos pressupostos fáticos e jurídicos], fá-lo sempre sob a suposição metodológica interina de culpabilidade penal/civil do acusado/demandado. Jamais afirma na denúncia/petição inicial com o dedo em riste – tomado pela paixão de um advogado – a existência da ação de direito material que porventura o Estado-juiz tenha de substitutivamente realizar. Tão somente ao final da instrução o MP transita da sub-posição [plano da provisoriedade] para a assunção de uma posição [plano da definitividade], pedindo in fine a condenação/procedência ou a absolvição/improcedência (Para uma distinção entre pressuposição, suposição e posição, v. nosso Presunção de inocência civil. RBDPro 100/129-144). Não é de se estranhar que assim seja: sendo o MP curador do direito objetivo, compete-lhe ao final reconhecer se incidiu ou não a norma de direito material por ele aventada, se há ou não nos autos prova do suporte fático da ação de direito material cuja existência foi por ele suposta ao longo da instrução. Daí a desnecessidade de intervenção do MP como custos legis em ação por ele próprio aforada: seja como autor, seja como fiscal da ordem jurídica, deve ele igualmente zelar com imparcialidade pelo direito objetivo. Isso mostra que as duas atividades são «consubstanciais». Elas têm idênticos conteúdo e objeto, embora formalmente distintas.
IX
De acordo com o princípio da soberania popular, todo poder é emanado do povo, devotado para o povo e exercido pelo povo diretamente [= democracia direta ou participativa], nos termos da Constituição, ou mediante representantes [= democracia indireta ou representativa]. Sob um ponto de vista eminentemente jurídico, o poder consiste em criar o direito e aplicar o direito. De maneira mais refinada, pode-se dizer que o poder consiste 1) na edição do direito [= poder jurislativo], 2) na aplicação do direito por terceiro à relação discutida, revestido de garantias de imparcialidade, cujos méritos decisórios sejam incontroláveis ab extra [= poder jurisdicional], e 3) na aplicação do direito pela própria parte da relação discutida ou por terceiro, revestido ou não de garantias de imparcialidade, cujas méritos decisórios sejam controláveis ab extra [= poder administrativo]. Assim, os legisladores são os representantes legislativos do povo [representantes eleitos ou com legitimidade democrática originária]; os juízes e tribunais, os representantes judiciários do povo [representantes não eleitos ou com legitimidade democrática derivada]; os governantes, os representantes executivos do povo [representantes eleitos ou com legitimidade democrática originária] (sobre o tema, v. nosso O Poder Judiciário diante da soberania popular: o impasse entre a democracia e a aristocracia. <https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-71-o-poder-judiciario-diante-da-soberania-popular-o-impasse-entre-a-democracia-e-a-aristocracia>).
Logo, só existem três Poderes instituídos pela CF/1988: i) o Poder Legislativo [Título IV, Capítulo I], que desempenha preponderantemente o poder jurislativo; ii) o Poder Executivo [Título IV, Capítulo II], que desempenha preponderantemente o poder administrativo; iii) o Poder Judiciário [Título IV, Capítulo III], que desempenha preponderantemente o poder jurisdicional. Quartum non datur. Não pode o Ministério Público ser um «Quarto Poder». Em sentido político-constitucional, exerce funções, não autêntico poder. Não emanam elas do povo. O exercício das funções ministeriais não implica edição nem aplicação do direito. Como autor, o MP exerce função procuratória e propulsora da atividade jurisdicional, pedindo a aplicação do direito pelo juiz; como custos legis, atua pela correta aplicação do direito pelo juiz mediante oferecimento de parecer, produção de prova e interposição de recurso; só por vezes, no desempenho de função administrativa, ele próprio aplica o direito nos procedimentos administrativos de sua competência. Na verdade, trata-se de uma função anexa [ad-nexa], não inexa [in-nexa]; não flui de dentro do povo, do íntimo popular, embora se junte por fora aos poderes que do povo fluem; o nexo com o povo e, por via reflexa, com os três Poderes, é externo, não interno; é função criada pela Constituição para acoplar-se desde fora [«from outside»], não emanada do povo para concertar desde dentro [«from inside»]. Logo, o MP não é um órgão de soberania popular. Não age em nome do povo e, por isso, não tem representatividade popular. Apesar de surtos populistas que acometem setores «progressistas» da carreira ministerial, um promotor não é um «representante do povo». Não possui nem busca possuir legitimidade democrática. Não é, em essência, um «advogado direto do povo» (em sentido contrário: COMPARATO, Fábio Konder. O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. n. 40. 2001, p. 80; DALLARI, Dalmo de Abreu. Ministério Público: advogado do povo. Justiça, cidadania e democracia. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Ministério Público Democrático. 2006, p. 84). Quando muito é um «advogado indireto», que trabalha pelo cumprimento exato da Constituição e das leis aprovados pelos representantes democraticamente eleitos. Não patrocina direitos subjetivos do povo, mas o direito objetivo do Estado. Assim sendo, o MP é um órgão menos democrático que aristocrático, se bem que num Estado Democrático de Direito tenha a incumbência de defender o próprio regime democrático [CF/1988, art. 127, caput; LC 75/1993, artigos 1º, 5º, I, e 6º, XIV; Lei 8.625/1993, art. 1º].
De todo modo, a função ministerial se desempenha perante o Poder Judiciário e em razão dele. Atuando de forma judicial ou extrajudicial, mas sempre tendo o Poder Judiciário como ponto referencial, o MP vela pelo ordenamento jurídico do Estado. Por isso, posiciona-se institucionalmente ao redor da jurisdição. Tem natureza jurídica circunjurisdicional. É – na dicção da CF/1988 – uma «função essencial à Justiça» [Título IV, Capítulo IV, Seção I]. Nesse sentido, coloca-se ao lado da Advocacia Pública [Título IV, Capítulo IV, Seção II], da Advocacia [Título IV, Capítulo IV, Seção III] e da Defensoria Pública [Título IV, Capítulo IV, Seção IV]: em regra, a Defensoria Pública cuidando dos direitos subjetivos dos cidadãos necessitados; a Advocacia, dos direitos subjetivos dos cidadãos em geral; a Advocacia Pública, dos direitos subjetivos do Estado; o Ministério Público, do direito objetivo do Estado. É importante sublinhar que, à luz da CF/1988, o MP brasileiro não é órgão de qualquer dos três Poderes, conquanto de todos eles equidiste. Nalguns países, o MP integra ou já integrou: a) o Poder Judiciário [ex.: Constituição italiana de 1948; Constituição espanhola de 1978]; noutros, b) o Poder Executivo [ex.: Constituição brasileira de 1967; «Constituição brasileira de 1969»); noutros, ainda, c) o Poder Legislativo [ex.: Constituição da Alemanha Oriental de 1974; Constituição búlgara de 1971]. a) Como órgão judiciário, olha-se o MP pela imparcialidade, que de seus membros se exige; b) como órgão executivo, pela fiscalização, que exerce sobre a incolumidade dos bens jurídicos; c) como órgão legislativo, pela legalidade, por cuja exata observância zela. No Brasil de hoje, porém, o MP é um órgão público insolitamente «solto», sem personalidade jurídica, desvinculado de qualquer Poder, posto que pertença ao Estado. Não lhes é um «setor» nem uma «repartição». Tem LOCALIZAÇÃO XENOTÓPICA no edifício institucional brasileiro. Padece de out-of-placeness. Por isso, possui um regime jurídico-político sui generis: vaga num limbo organizativo-constitucional, embora tenha para si «assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo […] propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira» [CF/1988, art. 127, § 2º]. E é bom que assim seja, pois permite que desde fora o MP controle o cumprimento fiel do direito objetivo pelos três Poderes.
X
O Ministério Público não é «representante da sociedade». Quando se diz que a sociedade é «representada» pelo MP, deve-se saber que a afirmação é menos técnico-jurídica que retórico-política. O MP cuida de instituições, bens jurídicos ou fatias temáticas do direito objetivo, ao redor das quais gravitam interesses ostentados por uma dispersão amorfa de pessoas indeterminadas espalhadas por toda a sociedade. Por isso, de ordinário, cuidando civil ou penalmente desses valores institucionais, o MP cuida dos interesses reflexos da própria sociedade. Só nesse impreciso sentido, portanto, se pode dizer que o MP a «representa». Ainda assim, nada impede que, ante a necessidade de se tutelar o ordenamento jurídico do Estado, a sociedade – mormente a maioria – seja contrariada em seus interesses pelo MP. Isso mostra mais uma vez que ele serve variavelmente à sociedade e invariavelmente ao direito objetivo. Num Estado democrático, o MP defende o regime democrático porque defende a democraticidade que lhe impregna a legalidade; igualmente, num Estado autocrático (socialista, nazista, fascista etc.), defende o regime autocrático porque defende a autocraticidade que lhe impregna a legalidade. Logo, no caso brasileiro, o MP não é funcionalmente democrático ex vocatione & donis extraordinariis, mas ex vi constitutionis. Aliás, não se pode olvidar que se trata de uma instituição de poder. Pudera: é tratado no Título IV da CF/1998 («Da organização dos Poderes»).
LUIGI FERRAJOLI propugna o Ministério Público – mormente na América Latina, onde não se limita à função de acusador público – como uma «instituição de garantia», já que luta pela efetivação de direitos fundamentais (Per un Pubblico Ministero come istituzione di garanzia. Garantismo penal integral. 4. ed. Org. Bruno Calabrich et al. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2017, p. 34-45). No entanto, a aludida luta não desnatura a instituição, não faz dela uma garantia em si, não a isenta de abusos e desvios, não apaga as garantias cidadãs contra ela existentes. Num ambiente republicano, onde há poder do Estado, ali há de haver as respectivas garantias individuais (também conhecidas como garantias de liberdade ou garantias de primeira dimensão). Elas protegem os cidadãos dos eventuais desvios e excessos cometidos pelos exercentes do poder. Portanto, ao poder jurislativo se opõem as garantias contralegislativas [ex.: ADI, ADC, ADPF, ADO, mandado de injunção, controle difuso de constitucionalidade]; ao poder administrativo, as garantias contra-administrativas [ex.: licitação, concurso público, ação popular, mandado de segurança, prestação de contas, moralidade]; ao poder jurisdicional, as garantias contrajurisdicionais [ex.: devido processo legal, contraditório, juiz natural, ampla defesa, duplo grau de jurisdição, reclamação às ouvidorias de justiça] (sobre a tema, v. nosso Notas para uma garantística. <https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-40-notas-para-uma-garantistica>). Do mesmo jeito, ao poder ministerial se devem opor GARANTIAS CONTRAMINISTERIAIS, especialmente no Brasil, onde o MP tem status quase omnipresencial. São exemplos dessas garantias constitucionais: o direito de petição contra ilegalidade ou abuso de poder [art. 5º, XXXIV, a]; o habeas corpus [art. 5º, LXVIII]; o mandado de segurança [art. 5º, LXIX]; o processo de impeachment contra o Procurador-Geral da República [art. 52, II]; a reclamação às ouvidorias do Ministério Público [art. 130-A, § 5º]; a reclamação ao Conselho Nacional do Ministério Público [art. 130-A, § 2º, III]; as reclamações e denúncias à Corregedoria Nacional do Ministério Público [art. 130-A, § 3º, I].
A propósito, chama atenção o injustificável silêncio da doutrina constitucional brasileira sobre o tema. Afinal, a história universal relata uma longa ficha de serviços já prestados pelo MP às tiranias. Otto von Bismarck, Chanceler da Alemanha e Ministro-Presidente da Prússia, se utilizou do Ministério Público [Staatsanwaltschaft] – que tinha o monopólio do exercício da ação penal e cujos membros eram funcionários públicos forçados a obedecer instruções superiores – para retaliar os seus opositores políticos (sobre o tema: MÜLLER, Ingo. Los juristas del horror. Trad. Carlos A. Figueredo. Bogotá: Alvaro Nora, 2014, p. 15). Isso sem falar da Prokuratura soviética, cujo poder antidemocrático de supervisão geral controlava o Poder Judiciário e, com isso, defendia o arcabouço ideológico do estado totalitário que vigorava na extinta U.R.S.S. Daí a necessidade de se tornar controlável pelo próprio cidadão a função ministerial. Ora, nos dias atuais, por vezes se veem abusos nas funções ministeriais de instaurar inquérito civil, instaurar procedimento de investigação criminal, ordenar a instauração de inquérito penal, oferecer denúncia, ajuizar ação de improbidade administrativa e nela requerer a indisponibilidade de bens do réu. A situação ainda se agrava contra a esfera de liberdade dos cidadãos quando se sabe que no Poder Judiciário grassa uma espécie de «viés de Ministério Público» [prosecutorial bias]: como bem aponta a Comissão de Veneza no relatório supramencionado, «In some countries a ‘prosecutorial bias’ seems to lead to a quasi-automatic approval of all such requests from the prosecutors. This is a danger not only for the human rights of the persons concerned but for the independence of the Judiciary as a whole» [tradução: «Em alguns países, um ‘viés do Ministério Público’ parece levar a um deferimento quase automático de todos esses pedidos dos promotores. Este é um perigo não só para os direitos humanos das pessoas envolvidas, mas também para a independência do Judiciário como um todo»]. No Brasil, a «decisão judicial de recebimento da denúncia» – praticamente uma carimbada – é exemplo crasso.
XI
No presente artigo, exploraram-se três ordens de atribuição ministerial: i) a atribuição una primordial [unidade]; ii) as atribuições múltiplas derivadas [multiplicidade]; iii) as atribuições complementares [complementaridade]. Concluiu-se que a atribuição una primordial, que serve de fundamento último ao Ministério Público, é esta: velar e fazer velar pelo direito objetivo. No entanto, a relação entre a unidade e a multiplicidade não é imediata. A mediação entre a atribuição una primordial e as atribuições múltiplas derivadas é obra da Constituição. Ela é o artífice que, em cada país, plasma o conjunto material das múltiplas atribuições ministeriais em função das particularidades nacionais, realizando derivações e complementações ao seu modo. Não sem motivo os ministérios públicos das diferentes nações se assemelham ou se imitam, o que viabiliza entre eles um contínuo intercâmbio internacional cada vez mais intenso. Ao fim e ao cabo, todas as constituições partem de um «paradigma ideal»: o MP como a zeladoria – nas situações de pré-acionante, acionante e interveniente – de bens jurídicos, instituições ou fatias temáticas do ordenamento jurídico do Estado. Todavia, o Brasil padece de um «excesso presencial de Ministério Público», que acumula um nunca acabar de funções e, por isso, prefere umas a outras. No País, contudo, uma percepção unitária-unificante das funções do MP ainda é nula. A despeito disso, JOSÉ AFONSO DA SILVA teve há alguns anos um lampejo pioneiro, infelizmente por ele próprio subexplorado: «No essencial sua função primordial permanece sendo velar e fazer velar pela observância da lei. Assim é mesmo quando a Constituição lhe incumbe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Tudo isso se resume na sua finalidade de prover sobre a exata observância do direito objetivo, incluindo a Constituição» (Ob. cit., p. 595) (d. n.). Essa parece ser a plataforma de lançamento para uma constitucionalística definitiva sobre o Ministério Público, desenvolvida não apenas por membros da instituição in causa sua, mas por toda a comunidade haberliana dos intérpretes da Constituição.