36. PROCESSO E RAZÕES DE ESTADO

Ao meu amigo-irmão Lúcio Delfino

I

Abandonado à própria sorte e às razões das partes [raisons privées], o processo seria um laissez-faire. Isso lhe seria deletério. Daí por que deve ele salpicar-se de razões de Estado [raisons d’État]. Trata-se de finsescopospropósitosinteressesmetasobjetivosinjunções instrumentais planejadas ou qualquer outra modalidade exógena de satisfação adicional ou alternativa, não estabelecidos pelas partes, impostos telocraticamente pela legalidade do Estado e cuja observância é fiscalizada pelo juiz. Nesse sentido, pode-se afirmar que as raisons privées se materializam em imperativos dos interesses das partes (i. e., em ônus, que elas exercem mediante um cálculo íntimo indevassável); as raisons d’État, em imperativos de interesses alheios, que não das partes (i. e., em deveres, que são coagidas externamente a cumprir). A ausência absoluta de razões de Estado faria do processo uma anárquica «coisa das partes», um ambiente autodestrutivo de duelos intermináveis; a presença absoluta, uma despótica «coisa do juiz», um ambiente autoritário de mandos, comandos e desmandos. O vácuo de raisons d’État produz libertinagem; o excesso, sufocamento. Destarte, não sendo uma coisa nem outra, o processo há de ser precisamente uma «coisa pública» [res publica]. Afinal de contas, é uma garantia de liberdade do cidadão em juízo ou, simplesmente, uma garantia individual contrajurisdicional [CF/1988, art. 5º, LIV], que – quando do arbítrio do juiz contra qualquer das partes – a serve e o desserve. Logo, o processo não é «coisa das partes» [= espaço total de «intenções privadas»], nem «coisa do juiz» [= espaço total de «intenções públicas»], mas «coisa para as partes» [= espaço de «intenções privadas» afetadas por «intenções públicas»]. Na verdade, é «coisa da lei para as partes». A cópula entre «coisa» e «lei» é de pertença; entre «coisa» e «partes», de serventia. Noutros termos: o processo não é uma circunscrição estatal super-regulada pelo juiz para protagonizar o seu domínio sobre as partes [= hiperpublicismo processual], nem uma arena privada autorregulada pelas partes para protagonizarem um combate [= hiperprivatismo processual], mas um espaço público nomocrático, regulado pela lei, que a elas se empresta para protagonizarem um debate [= garantismo processual = publicismo estrutural + privatismo funcional] (logo, garantismo processual não é sinônimo de «neoprivatismo»; sem razão: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O neoprivatismo no processo civil. Temas de direito processual – nona série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 87-101). E ao juiz compete isto: garantir – com imparcialidade, impartialidade e independência – as condições adverbiais não-instrumentais do debate estabelecidas de modo geral e abstrato na lei [rule of law].

No entanto, é necessário que as raisons privées sejam um maximum e as raisons d’État um minimum. É bem verdade que não se pode calcular matematicamente essa proporção; porém, a combinação entre raisons privées e raisons d’État não se faz em proporções discricionárias, como se pudesse haver um maximum de raisons d’État e um minimum de raisons privées. Não se trata de um mero exercício de política legislativa. O legislador infraconstitucional não pode fazer preponderar o critério da autoridade sobre o da liberdade. Daí por que à aludida proporção devem estar atentos os canais oficiais de controle de constitucionalidade. Se assim não é, há o risco de desnaturação da «coisa pública para as partes» em «coisa estatal do juiz». Há o risco de desidratação da garanticidade processual. Há o risco de captura do processo pela autoridade jurisdicional, cujo arbítrio se busca refrear. A acumulação quantitativa, lenta e gradual de razões de Estado leva o processo a um salto brusco e nítido de «qualidade» hiperpublicista. Por conseguinte, sendo a liberdade das partes a regra e a autoridade do Estado-juiz a exceção [princípio da primazia da liberdade sobre a autoridade], as raisons d’État devem confinar-se acanhadamente em hipóteses legais expressas e discretas (sobre a supremacia da liberdade sobre a autoridade, v., p. ex., nosso Liberdade e autoridade no direito processual… <https://emporiododireito.com.br/leitura/liberdade-e-autoridade-no-direito-processual-uma-combinacao-legislativa-em-proporcoes-discricionarias-ou-ensaio-sobre-uma-hermeneutica-topologico-constitucional-do-processo>).

Basicamente, cinco são as principais classes de razão de Estado que permeiam o processo, planificando-o em alguma medida: a) ordem pública; b) cooperação; c) moralidade; d) eficiência; e) igualdade.

II

A noção de ordem pública é vaga; não consegue fazer-se bem compreendida por meio de definições claras, curtas e lapidares. É melhor mostrada que demonstrada, exemplificada que conceituada, sugerida que apreendida. Entrecruza, por exemplo, as ideias de interesse públicosegurançabons costumesmoralidadepaz socialcredibilidade das instituiçõestranquilidade pública e salubridade, embora não se reduza a qualquer uma delas, nem ao conjunto de todas elas reunidas. Projetada sobre o âmbito processual, a ordem pública consiste no conjunto das matérias de interesse do Estado sobre as quais o juiz se deve pronunciar a qualquer tempo e grau de jurisdição, ainda que não suscitadas pelas partes. Trata-se, pois, de matérias cognoscíveis per officium iudicis. Contudo, não se pode olvidar que o processo é um espaço de liberdade [freedom] e de «liberdade» [liberty]: é exclusiva das partes a tarefa de aportar aos autos os fundamentos de direito, os fundamentos de fato e as provas, não podendo o juiz interferir nesse aporte para lhes imprimir adições, alterações e supressões (v. nosso Processo: garantia de liberdade [freedom] e garantia de «liberdade» [liberty]. <https://emporiododireito.com.br/leitura/processo-garantia-de-liberdade-freedom-e-garantia-de-liberdade-liberty>). As partes constituem livremente para si todo o objeto do debate em juízo. Logo, as matérias de ordem pública devem ser tímidas e estar claras na lei. Dada a enorme dificuldade de se definirem as características distintivas que delimitam o conceito de ordem pública [= definição intencional], só é possível à lei enumerar exaustivamente as matérias que estão compreendidas nesse conceito [= definição extensional]. No sistema brasileiro de direito positivo atual, são exemplos dessas matérias: a incompetência absoluta [CPC, art. 64, § 1º]; a ausência de pressupostos processuais [CPC, art. 485, IV]; a existência de perempção, litispendência e coisa julgada [CPC, art. 485, V]; a ausência de legitimidade ou de interesse processual [CPC, art. 485, VI]; a intransmissibilidade ex vi legis da ação em caso de morte da parte [CPC, art. 485, IX]; a decadência [CC, art. 210 c.c. CPC, art. 487, II]; a prescrição [CC, art. 193 c.c. art. 487, II]; as questões assim expressamente definidas em lei [ex.: CDC, art. 1º]; a nulidade do negócio jurídico [CC, art. 168, parágrafo único]; a nulidade da execução [CPC, art. 803, parágrafo único]. A «impossibilidade jurídica do pedido» – outrora referida no art. 267, VI, do CPC/1973 – hoje se acomoda no art. 485, VI, do CPC/2015, como ausência de interesse processual (aliás, se com base em matéria de ordem pública não se permitisse em regime excepcional sentença terminativa liminar em ações manifestamente infundadas [ex.: usucapião de bem público, cobrança de dívida de jogo, pedido de herança de pessoa viva, prisão por dívida não-alimentícia], o juiz seria impelido ao iura novit curia e, assim, à possibilidade geral e irrestrita de ditar sentença de improcedência liminar com base em fundamento não invocado pelo réu; ou seja, a «impossibilidade jurídica do pedido» como matéria de ordem pública é «o» nó impeditivo à vulgarização do iura novit curia).

Portanto, em regra, não pode o juiz introduzir de ofício fundamentos. Introduzindo fundamento inédito de ação, favorece o autor; introduzindo fundamento inédito de defesa, favorece o réu; favorecendo objetivamente quem quer que seja, perde a impartialidade [= neutralidade funcional = imparcialidade em sentido objetivo], posto que a princípio tenha imparcialidade [= neutralidade psicológica = imparcialidade em sentido subjetivo]. Ainda assim, suspeita-se que a quebra de impartialidade por introdução oficiosa de fundamento tenda a uma quebra de imparcialidade, visto que o juiz tende a se enviesar, supervalorizando inconscientemente o «seu» fundamento e, em consequência, desvalorizando eventual contrafundamento. É inegável que a introdução oficiosa de matéria de ordem pública também configura quebras de impartialidade e, eventualmente, de imparcialidade; porém, há de se tolerar essa quebra excepcional em prol da fulminabilidade quase imediata de demandas estapafúrdias (o que só se poderá dar, obviamente, após a oitiva do demandante). Ora, se assim é, então não pode o juiz ampliar o objeto de discussão suscitando inconstitucionalidade ou ilegalidade stricto sensu que não configure matéria de ordem pública e que não haja sido invocada como fundamento de ação ou de defesa. O juiz não é «fiscal da lei», «curador da ordem jurídica», «zelador do direito objetivo» [custos legis], senão o Ministério Público [CPC, art. 178]. Onde o sistema procedimental quer a correta aplicação do direito objetivo à tout propós, ali prevê a presença obrigatória do MP, que para a consecução do seu mister pode «produzir provas, requerer as medidas processuais pertinentes e recorrer» [CPC, art. 179, II] (sobre o tema, v. nosso O fundamento do Ministério Público. <https://emporiododireito.com.br/leitura/4-o-fundamento-do-ministerio-publico>). Logo, se a parte não invocar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade do fundamento ex adverso, poderá ter contra si uma sentença definitiva ilegal ou inconstitucional. Nesse caso, a eventual coisa julgada material se poderá desfazer pela via rescisória [CPC, art. 966, V].

III

É preciso cuidado com a figura do juiz como «fiscal da legalidade oficial do Estado». Essa visão autoritária vai ao encontro do que prescrevia a segunda parte do artigo 2º dos Fundamentos do processo civil da URSS e das Repúblicas Federadas («Основы гражданского судопроизводства Союза ССР и союзных республик»), de 1961: «O processo civil deve contribuir para o reforço da legalidade socialista e a prevenção de infracções, educar os cidadãos para a execução constante das leis soviéticas e o respeitar às regras das relações socialista» («Гражданское судопроизводство должно способствовать укреплению социалистической законности, предупреждению правонарушений, воспитанию граждан в духе неуклонного исполнения советских законов и уважения правил социалистического общежития») (<http://museumreforms.ru/node/13893>. Acesso 10 set. 2019). Em verdade, o juiz é um resolvedor de conflitos desde as normas jurídicas invocadas pelas partes. Cabe-lhe simplesmente dizer se incidiram ou não incidiram. Não é papel seu tecer adições, alterações e supressões ao conjunto das normas jurídicas invocadas pelas partes. Juiz não é guardião do ordenamento jurídico do Estado. Não sabe coisa alguma do «interesse público» que gravita ao redor da sua correta aplicação. Por isso, não lhe compete aplicar ex officio norma jurídica não invocada. i) Se não incidiu a norma invocada pelo autor como fundamento da ação, mas outra, o juiz deve proferir sentença de improcedência (nesse caso, nada impede que o autor ajuíze nova ação, agora fundada na norma realmente incidente); ii) se incidiu a norma invocada pelo autor como fundamento da ação, e se não incidiu a norma invocada pelo réu como fundamento da defesa, mas outra, o juiz deve proferir sentença de procedência (nesse caso, nada impede que o réu ajuíze ação rescisória alegando manifesta afronta à norma realmente incidente) (obs.: a introdução oficiosa de fundamento jurídico inédito pode prejudicar a parte que lhe aguarda estrategicamente uma melhor acolhida jurisprudencial e que o reserva para uma eventual segunda ação, caso vencida na primeira; além disso, pode forçar a parte a produzir prova a que não esteja preparada, já que o fundamento introduzido pode equivaler a norma jurídica com suporte fático distinto ou mais complexo).

Tampouco compete ao juiz ex officio ordenar prova da ocorrência da hipótese de incidência da norma invocada. Essa visão também autoritária vai ao encontro do que dispunha o artigo 103, (I), da Constituição da República Socialista da Tchecoslováquia («Ústava Československé socialistické republiky»), de 11 de julho de 1960: «Nos processos, os tribunais devem proceder de modo a verificarem o estado real da questão e a basearem suas decisões nela» («V řízení postupují soudy tak, aby byl zjištěn skutečný stav věci, a při svém rozhodování z něho vycházejí» (<https://web.archive.org/web/20071010101042/http://www.psp.cz/docs/texts/constitution_1960.html>. 10 set. 2019). iii) Se há inexistência ou insuficiência probatória da incidência da norma invocada pelo autor como fundamento da ação, o juiz deve proferir sentença de improcedência por falta de prova; iv) se há prova da incidência da norma invocada pelo autor como fundamento da ação, e se há inexistência ou insuficiência probatória da incidência da norma invocada pelo réu como fundamento da defesa, o juiz deve proferir sentença de procedência. Obviamente, não compete ao juiz ordenar de ofício prova da ocorrência da hipótese de incidência da norma por ele suscitada de ofício. Em (i), se o juiz invoca a norma incidente, opera em favor do autor. Em (ii), se o juiz invoca a norma incidente, opera em favor do réu. Em (iii), se o juiz prova a incidência da norma invocada pelo autor, opera em favor do autor. Em (iv), se o juiz prova a incidência da norma invocada pelo réu, opera em favor do réu. Portanto, em (i), (ii), (iii) e (iv), o juiz favorece objetivamente uma das partes, descai da sua neutralidade funcional e, em consequência, quebra a sua imparcialidade objetivo-funcional (com todos os riscos que isso implica à sua imparcialidade subjetivo-psicológica). Como se vê, trata-se de face e contraface do mesmo fenômeno hiperpublicista: 1) no plano das normas, a curadoria judicial do direito objetivo [iura novit curia]; 2) no plano dos fatos, o inquisitivismo judicial probatório [iudex potest ex officio in facto supplere]. Uma coisa leva geralmente à outra, pois ambas são necessárias à «correta aplicação da lei». Sob a ótica hiperpublicista, a incidibilidade entre quæstio iuris e quæstio facti induz a complementaridade ocupacional entre o law-protector e o fact-finder. E com isso se destrói o principal corolário da liberdade dos cidadãos em juízo: a autorresponsabilidade.

IV

Não há texto expresso de direito positivo que trate a inconstitucionalidade como matéria de ordem pública. Não vige no Brasil, por exemplo, regra como o artigo 93, IV, da Σύνταγμα, a Constituição da Grécia de 1975 [Το Σύνταγμα της Ελλάδας]: «Τα δικαστήρια υποχρεούνται να μην εφαρμόζουν νόμο που το περιεχόμενό του είναι αντίθετο προς το Σύνταγμα» [«Os tribunais são obrigados a não aplicar uma lei que seja contrária à Constituição»]. Logo, o juiz brasileiro não tem o poder-dever de introduzir e resolver questão de constitucionalidade que entenda pertinente. Não há lei que lhe impute o mister de ponderar invariavelmente sobre a constitucionalidade de todas as normas que se lhe invoquem como fundamento de ação ou de defesa. Ante a separação de poderes (que é princípio originário) e a pressuposição de constitucionalidade das leis (que é princípio derivado), mesmo a decretação de inconstitucionalidade com pedido expresso da parte é excepcional, já que entrechoca juiz e legislador; logo, ainda mais excepcional é a decretação de inconstitucionalidade ex officio. Vige no País o princípio ne iudex sine parte. Todavia, não é esse o entendimento dos Tribunais superiores (cf., p. ex., STF, Pleno, RE 264.289/CE, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 03.10.2001, DJ 14.12.2001: «Possibilidade de declaração de ofício, no julgamento do mérito de RE, da inconstitucionalidade de ato normativo que o Tribunal teria de aplicar para decidir a causa, posto não prequestionada a sua invalidez»; STJ, 6ª Turma, EDcl no AgRg no RESP 704.990/ES, rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 24.11.2015, DJe 07.12.2015: «A inconstitucionalidade de determinada norma é questão de ordem pública, possuindo natureza de nulidade absoluta, podendo ser declarada a qualquer tempo, de ofício ou a requerimento da parte »). De qualquer forma, nos referidos julgados grassa uma penúria dogmática sobre o tema, como se a qualificação da inconstitucionalidade como matéria de ordem pública fosse uma verdade autoevidente, que não exigisse maiores discussões.

Ora, inconstitucionalidade – como fundamento jurídico que é – só pode ser apreciada pelo juiz se aventada pelas partes. Introduzindo motu propria questão constitucional, o juiz favorece objetivamente a parte omissa que dela se aproveitaria e, assim, quebra consequentemente a impartialidade e eventualmente a imparcialidade. Esse tipo de introdução nem mesmo é possível no âmbito procedimental penal brasileiro: ante a falta de invocação de inconstitucionalidade relevante, o juiz pode declarar o acusado indefeso, destituir-lhe o defensor original e nomear-lhe porventura um novo defensor; porém, jamais pode invocar inconstitucionalidade sem petição da parte, ainda que in favor rei. Na verdade, só há uma possibilidade excepcional de controle de constitucionalidade difuso per officium iudicis: quando entre si coincidam a inconstitucionalidade e a «impossibilidade jurídica do pedido» [ex.: usucapião de bem público – CF/1988, artigos 183, § 3º, e 191, parágrafo único]. Como já visto, há de se respeitar a liberdade individual da parte: a) que, no exercício regular da sua autonomia de vontade, renuncia tácita ou expressamente à ação, à exceção ou a qualquer outra posição jurídica ativa fundada no direito constitucional; ou b) que, embora não haja renunciado, simplesmente não invoca o fundamento constitucional porque, no desempenho calculado de uma estratégia legítima, prefere aguardar-lhe uma melhor acolhida jurisprudencial, reservando-o para uma eventual segunda ação caso vencida na primeira. Como bem dizem NICOLA TOMMASINI e ROBERTO BAPTISTA DIAS DA SILVA, «[…] a renúncia ao direito de obter a declaração de inconstitucionalidade pode se revelar como importante exercício de um outro direito fundamental: o direito de defesa. Não exercer o direito de suscitar o controle de constitucionalidade de uma norma aplicável ao caso concreto discutido perante o Judiciário pode ser uma estratégia legítima de defesa do direito defendido judicialmente» (Reflexões críticas sobre a declaração de inconstitucionalidade de ofício. Revista de investigações constitucionais. Curitiba. v. 5. n. 2. mai./ago. 2018, p. 195). No mesmo sentido: PLINER, Adolfo. Inconstitucionalidad de las leyes. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1961, p. 68-69. Por isso, a existência de um fundamento constitucional não invocado não cria exceção ao princípio da adstrição: o juiz é limitado por aquilo que dizem as partes sobre o conteúdo do direito objetivo, sem que possa suprir omissão com seu conhecimento próprio. Não existe qualquer presunção de que o juiz conheça a ordem jurídica melhor que as partes. Num sistema em que o processo é garantia contrajurisdicional de liberdade [freedom] e de «liberdade» [liberty], trabalha-se dentro de uma divisão ocupacional equilibrada, bem delimitada e rígida de tarefas entre o juiz e as partes: o juiz não arvora para si as liberdades da parte, nem lhes controla o exercício; em contrapartida, a parte não se arvora nos poderes do juiz, conquanto lhes controle o exercício. Enfim, o juiz não tem liberdade nem «liberdade», não interfere na atividade da parte, posto que a parte interfira na atividade do juiz. Nesse sentido, é exclusiva das partes a tarefa de aportar aos autos os fundamentos de direito, os fundamentos de fato e as provas, não podendo o juiz interferir nesse aporte para lhe imprimir adições, alterações e supressões. As partes constituem livremente para si todo o thema disputandum; somente a elas cabe nele inserir questão constitucional.

V

As partes não estão jungidas ao processo para nele travarem um incondicional e evanescente «relacionamento cooperativo proveitoso». Não são «colaboradoras», «colegas», «companheiras», «cúmplices». São adversárias, litigantes, contendoras. Operam, não «co-operam». Laboram para si próprias, não «co-laboram» para um fim comum. Estão juntas ao juiz, não «con-juntas» entre si. Não despendem energia, tempo e habilidade para converterem o processo em confraria, corporação, partido, liga, aliança. Processo é espaço de liberdade para as partes contra o juiz, não parceria público-privada entre ele e elas. É um contra-a-jurisdição e, em consequência, um para-os-jurisdicionados. Quando o processo se torna uma ordenação inteiriça de cooperação coercitiva, torna-se um sistema autoritário, controverso e nebuloso. Impede-se o conhecimento claro das regras do jogo pelas partes e, portanto, inibe-se qualquer planejamento estratégico de atuação em juízo. Aliás, para o cooperativismo, a clareza dessas regras não importa, pois no limite ideal a parte não tenta ganhar, mas «cooperar para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva». Daí por que surgem pretextos à ampliação arbitrária dos poderes judiciais. Assim, drena-se a força garantista do processo, facilitando-lhe a captura e a instrumentalização pelo Estado. Veja-se o artigo 6º do CPC-2015, que prescreve que «as partes devem cooperar entre si». Qual o conteúdo dessa cooperação? Em que medida uma parte deve cooperar com a outra? Qual a sanção imputável à parte que se recusa a cooperar? Qual o prêmio atribuível à parte que se prontifica a cooperar? O juiz pode definir essa sanção ou esse prêmio? Há balizas para essa definição? Não sem motivo, ao redor do dispositivo gravita uma doutrina babelina. Por isso, a aplicação direta do dispositivo à tout prix implica a outorga, a um «juiz iluminado», de poderes discricionários paralegislativos e, por conseguinte, afronta à separação de poderes. Isso mostra que, em realidade, o cooperativismo é «apenas» uma versão rósea do instrumentalismo.

Logo, não se deve usar o processo para «elevar» as partes de um «estado de natureza adversarial» a um «estado de civilidade cooperativo». O adversarial já é o civilizado. Já exprime o a-bate do instinto duelista pelo direito. Já indica a transformação do com-bate em de-bate. Já atesta a troca dos punhos pelos arrazoados. Levada ao extremo, a cooperação pode coagir a parte a contribuir – de modo «leal» e «honesto» – com a vitória da outra. Por isso, somente nalguns raros aspectos se pode exigi-la. Só aqui e ali hão de gotejar deveres pontuais, isolados e específicos de cooperação, previstos para a relação entre o juiz e as partes, mediante regras legais expressas bem definidas quanto à hipótese de incidência e à consequência jurídica [interpositio legislatoris], instituídas pelo legislador em atenção a imperativos de conveniência, oportunidade e praticabilidade. É o que preveem, p. ex., os artigos 9º, 10, 11, 77 §§ 1º e 2º, 80, 81, 317, 321, 489 § 1º I a VI, 493 parágrafo único, 927 § 1º, 932 parágrafo único e 933, todos do CPC/2015. Ainda assim, nada há de novo nesses deveres, pois decorrem de mera releitura forte do contraditório e da fundamentação das decisões; assim, não constituem «o» quid distintivo da cooperação (com razão: SOUSA, Diego Crevelin de. O caráter mítico da cooperação processual. <https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-10-o-carater-mitico-da-cooperacao-processual-por-diego-crevelin-de-sousa>). Na verdade, o pulo da cooperação do contratual ao processual não é pleno nem perfeito, uma vez que se vai de a) uma relação privada, bilateral, simétrica, não litigiosa, em que uma parte tem o que a outra quer [= prestação/contraprestação], para b) uma relação pública, trilateral, assimétrica, litigiosa, em que o juiz tem o que as partes querem [= prestação jurisdicional]. Não há, portanto, homologias geométrico-estrutural e conteudístico-funcional entre um âmbito e outro. Daí a fragmentariedade da cooperação, que se pulveriza em algumas poucas situações jurídicas restritas à relação entre o juiz e as partes. Daí, enfim, a impossibilidade de um «modelo cooperativo» e, portanto, do processo como um empreendimento suntuário de solidarité commune. Afinal, a cooperação não é um superprincípio de aplicação irrestrita per saltum. Tampouco dispõe o juiz de poderes sobrenaturais para despertar e impulsionar a capacidade colaborativa dos «bons litigantes a la Rousseau». A cooperação sofreu distorções doutrinárias no trajeto da Europa ao Brasil, cuja tropicalidade lhe imprimiu uma disciplina gaia e colorida, conquanto frouxa e inconsequente. Por aqui, a cooperação tem, por exemplo: 1) procedido a dobras de linguagem, dando nomes novos a coisas velhas [ex.: apropria-se das acepções fortes do contraditório e da fundamentação das decisões, como se fossem criação sua]; 2) inserido no sistema elementos despóticos [ex.: incute uma «colaboração forçada inter partes»]; 3) referendado quebras de imparcialidade [ex.: permite ao juiz auxiliar a parte mal representada].

VI

Se é verdade que pela cooperação se tenta moralizar o processo, é também verdade que nem toda tentativa de moralizar o processo perpassa a cooperação. Todavia, não se pode moralizar o processo mediante a aplicação direta de regras morais. A regra moral ainda não jurídica não é direito. O direito não contém a moral, nem é igual a ela [D ⊉ M]; tão pouco é contido por ela, como se dela fosse um subconjunto [D ⊄ M]. Em outras palavras: direito não é moral; direito não é moral especializada; moral não é direito generalizado; moral não é direito; direito não é moral generalizada; moral não é direito especializado. Num Estado democrático-parlamentar de direito legislado, a moral importa – quando muito – ao procedimento legislativo. Não se deduz a racionalidade das regras jurídicas diretamente das regras morais. Somente o poder legislativo, no curso das deliberações que envolvem a criação de uma lei, é o lugar apropriado para se considerar uma lei «moral» ou «imoral»; deste juízo moral sobre a lei não cabe ao poder judiciário extrair qualquer consequência prática. Se a regra moral inspira a regra jurídica, a moral entra aí como dado extrínseco, matéria-prima pré-jurídica. Não adentra o ordenamento jurídico estatal. Não fornece elementos ao sistema de direito positivo. Só interessa ocasionalmente aos legisladores, que criam o direito, não ao juiz, que o aplica. Se acaso o juiz moraliza aqui e ali o processo, fá-lo não porque aplica regra moral forense, mas porque, aplicando regra jurídica processual (inspirada), atende a eventual regra moral forense (inspiradora). Ou seja, no processo, a realização da moral forense só pode ser consequência reflexa da aplicação do próprio direito processual. O direito processual não se constrói sob a influência endógena da moral forense; logo, não se pode falar em «reforço jurídico da moral», nem em «reforço moral do direito». Ainda que assim não fosse, não seria possível aplicar regras morais, como quem aplica regras jurídicas. Não existe um vade mecum de preceitos morais forenses aceitos, que os reduza, resuma, compendie e exponha. Afinal, «a moral não é uma lista de permissões e proibições, mas uma prática diária» (OAKESHOTT, Michael. A regência da lei. Sobre a história e outros ensaios. Trad. Renato Rezende. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 208) (d. n.); destarte, marcada por inevitável indeterminação. Logo, nunca está pronta e acabada. Daí por que a alfabetização moral se dá de modo empírico-contínuo ao longo da vida social, enquanto o aprendizado jurídico se dá de modo científico-intermitente no curso da vida acadêmico-profissional.

Tudo isso infunde o risco de que, a pretexto de moralizar o processo, o juiz acabe por aplicar a sua própria moral indevassável. Há o risco de que o juiz imponha às partes in fore externo a moral a que se obriga in fore interno, transformando arbitrariamente os seus preceitos uni-laterais em omni-laterais. Ora, isso impede as partes de exercerem qualquer controle sobre a (in)autenticidade da suposta regra moral forense invocada pelo juiz. Um juiz supermoralista rígido pode estabelecer «certos» e «errados» absolutos desde um casuísmo que ele criou para si mesmo e, assim, inibir as partes de terem legitimamente o seu próprio «estilo atuação» no foro, impondo-lhes penalidades exageradas. Para que essa moralização per saltum do processo fosse racionalmente viável, seriam necessários critérios comuns [ex.: premissas morais, normas de dedução e indução moral, autoridade moral reveladora inconteste], compartilháveis por todos os sujeitos processuais, que conferissem objetividade aos deveres morais forenses; no entanto, todos os projetos nesse sentido foram historicamente malogrados. A «fonte ejetora da moral» jamais teve como ponto arquimediano, por exemplo, um «procedimento intuitivo», um «raciocínio imparcial», ou a estrutura de uma «realidade objetiva externa». Todas as ofertas teóricas de fundamentação da moral padecem igualmente de deficiências. Por isso, para que a esfera de liberdade dos cidadãos em juízo não seja asfixiável por caprichos súbitos do «senso particular» do juiz, é preciso que as imoralidades puníveis no processo [ex.: ofensas, mentiras, chicanas, joguetes, artimanhas, protelações] sejam previstas a) na lei (o que no Brasil – por ora – tem ocorrido apenas na lei procedimental civil), b) com exiguidade, c) mediante tipos dolosos [responsabilidade subjetiva], d) com hipóteses de incidência claras e precisas, e e) com sanções fixadas mediante metodologia similar à dosimetria da pena. Mais: é preciso que a punição ao improbus litigator se anteceda de f) requerimento da parte contrária, g) contraditório, h) ampla defesa e i) decisão fundamentada recorrível.

VII

O social-liberalismo, também chamado de «liberalismo moderno», fez o imperativo da eficiência migrar da esfera privada para a pública. A ideia de governança pública [new public management] também fez recair sobre as organizações governamentais o dever de otimizar as relações input-output [= aproveitamento] e output-goal [= rendimento]. Em tese, pode-se cogitar da imposição desse dever a organizações administrativas, jurislativas e jurisdicionais. Na Constituição, porém, imputa-se o dever de eficiência apenas ao exercício da função administrativa [art. 37, caput]. Lembre-se que os três subpoderes constituídos exercem igualmente função administrativa: função administrativo-executiva, função administrativo-legislativa e função administrativo-judiciária. Nesse sentido, posto que o dever de eficiência recaia sobre os três subpoderes, cinge-se às funções administrativas que lhe são próprias. A Constituição não prevê o «dever de eficiência jurislativa», nem o «dever de eficiência jurisdicional». Ainda assim, nada impede que a lei o faça; contudo, por princípio de hierarquia, jamais se sobreporá às garantias constitucionais contrajurisdicionais (juiz natural, contraditório etc.). Ou seja, deve-se cuidar para que, a pretexto de otimizar a eficiência jurisdicional, a lei não sabote a garanticidade processual. Enfim, deve-se cuidar para que o espaço de liberdade contrajurisdicional – o «devido processo legal» [CF, art. 5º, LIV] – não se desestruture e, consequentemente, não se desfuncionalize em prol das metas gerenciais do Estado-juiz. Afinal de contas, o processo serve aos jurisdicionados, não à jurisdição. Serve para que desta se protejam aqueles.

De qualquer maneira, não há razão para o processo se perder em desperdícios vãos de tempo e energia. Garantia não é sinônimo de travagem contra-operativa. A propósito, é garantia do jurisdicionado que a jurisdição não se perca nesses desperdícios. Daí a necessidade de um minimum de deveres de eficiência, dês que previstos em regras legais expressas. Nesse caso, essas regras devem buscar tanto aproveitamento [maximização de resultados com um mínimo de atos processuais, reputando-se válidos os que, não realizados na forma prescrita, lhe atingir o fim] quanto rendimento [entrega da tutela jurisdicional de modo efetivo e em tempo razoável]. Ou seja, devem-se instituir regras – com hipóteses de incidência e consequências jurídicas bem definidas – sobre i) economia processual, ii) instrumentalidade das formas, iii) efetividade e iv) duração razoável do processo. No CPC: (i) a economia processual se concretiza, v. g., nas regras dos artigos 337 (que permite alegarem-se na contestação a incompetência relativa, a incorreção do valor da causa e a indevida concessão do benefício de justiça gratuita) e 343 (que permite a reconvenção na própria contestação); (ii) a instrumentalidade das formasv. g., na regra do artigo 188 (que considera válidos os atos que, embora não realizados na forma determinado pela lei, lhe preencham a finalidade essencial); (iii) a efetividadev. g., na regra do inciso IV do artigo 139 (que incumbe o juiz de «determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária»; deve-se, porém, interpretar o dispositivo legal conforme a Constituição, porquanto a sua extrema vagueza tem gerado, por exemplo, indiscriminadas suspensões de CNH, apreensões de passaporte e cancelamentos de cartão de crédito); (iv) a duração razoável do processo [CF, art. 5º, LXXVIII; CPC, artigos 4º e 139, II], v. g., nas regras do inciso VI do artigo 152 (que incumbe ao escrivão ou ao chefe de secretaria praticar, de ofício, os atos meramente ordinatórios) e dos artigos 190 (que institui os negócios processuais), 191 (que institui a calendarização) e 357 (que institui a decisão de saneamento e de organização do processo). A eficiência não é um princípio de aplicação imediata, per saltum, capaz de relativizar – ao gosto discricionário do aplicador – a eficácia de garantias incômodas. Daí ser inconcebível que à margem da lei a eficiência justifique, por exemplo, a flexibilização procedimental per officium iudicis (para um aprofundamento sobre o problema da eficiência processual, v., e. g., nosso É preciso desfazer imagem eficientista do juiz como agente regulador. <https://www.conjur.com.br/2018-jan-13/diario-classe-preciso-desfazer-imagem-eficientista-juiz-agente-regulador>. Acesso 12 set. 2019).

VIII

A Constituição vê o processo – o «devido processo legal» [art. 5º, LIV] – como uma garantia de liberdade, não de igualdade. Insere-se no rol dos direitos fundamentais de primeira dimensão [Título II, Capítulo I], não de segunda dimensão [Título II, Capítulo II]. Logo, a sua tarefa constitucional número um é proteger as partes do arbítrio jurisdicional, não fazê-las iguais no debate. Todavia, a via da igualdade para a des-igualdade imoderada é a via do debate para o pseudo-debate. O mais forte tende a melhor aproveitar-se do de-bate e, assim, a a-bater o adversário. Mais: protege-se melhor dos arbítrios do juiz. Destarte, a via da igualdade para a des-igualdade imoderada é também a via da liberdade para a pseudo-liberdade. Liberdade com desigualdade extrema é sub-liberdade, modo privativo de liberdade, liberdade sob reserva. Um minimum de igualdade entre as partes é preciso, pois. Entretanto, não se trata de só lhes conferir igualdade formal, senão material. Não lhes bastam as mesmas armas, mas uma habilidade parecida de manejo (a fim de que as partes tenham igualdade de oportunidades e, partir dela, possam conduzir-se no processo dentro do próprio «estilo de atuação» que escolheram, sem que isso implique necessariamente uma igualdade de resultados). Não raro é difícil saber, porém, quando as partes são desiguais e como se podem igualar. A (des)igualdade resulta da comparação entre dois termos desde um critério. Assim, num processo, há múltiplos critérios entre si imbricados [ex.: competência profissional do advogado, capacidade financeira para os custos do processo, nível socioeconômico, grau de escolaridade, faixa etária, experiência com litigância, domínio técnico-cientifico das questões fáticas], os quais nem sempre são objetiváveis e cujas variadas combinações dificultam a comparação. Ademais, há múltiplos meios de igualação, que se podem aplicar de maneira isolada ou combinada [ex.: prioridade no trâmite processual, prova de ofício, inversão do ônus da prova, gratuidade de justiça, intervenção do MP como custos legis, prazos diferenciados, assimetria de meios impugnativos, representatividade por defensoria pública]. Por isso, não se permite ao juiz escolher in casu os critérios de aferição de desigualdade e os meios de tentativa de igualação. Isso configuraria exercício oblíquo de legislação, não exercício regular de jurisdição. Configuraria, enfim, atividade política, não tecnoburocrática. Quando muito pode o juiz afastar regras legais de desigualação que repute inconstitucionais, não aplicar regras de igualação por ele próprio criadas.

Assim sendo, o esforço pela equalização entre as partes somente é possível mediante regras legais expressas, com hipóteses de incidência e consequências jurídicas bem delimitadas (nenhuma delas, aliás, imune a controle de constitucionalidade). Num Estado democrático-parlamentar de direito legislado [CF, artigos 1º e 5º, II], a igualdade só pode partir da liberdade e ser buscada dentro da lei, não à margem dela. Não se podem imolar liberdades civis e políticas a direitos sociais, econômicos e culturais. Os primeiros são degrau obrigatório aos segundos. No procedimento penal, para equilibrar a assimetria entre acusação e acusado, preveem-se meios impugnativos privativos da defesa: embargos infringentes e de nulidade [CPP, art. 609, parágrafo único], habeas corpus [CPP, artigos 647 a 667] e revisão criminal [CPP, artigos 621 a 631]. Além do mais, pode o juiz controlar in favor rei a aptidão técnica da defesa [CPP, art. 497, V]. No entanto, são inadmissíveis teses extralegais como o custos vulnerabilis, a irrecorribilidade da absolvição pela acusação e a clemência contrária à prova dos autos pelo tribunal do júri. Já no procedimento civil, são exemplos de equalização: 1) o art. 6º, VIII, do CDC, que ante a verossimilhança da natureza consumerista da relação controvertida, faculta ao juiz a inversão do ônus da prova; 2) o art. 71 da Lei 10.741/2003, que assegura a prioridade na tramitação de processos em que idoso figure como parte ou interveniente; 3) a necessidade do MP como custos legis nos processos que envolvam interesse de incapaz [CPC, art. 178, II], nos processos que envolvam litígio coletivo pela posse de terra rural ou urbana [CPC, art. 178, III], na ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas [CPC, art. 554, § 1º], na interdição [CPC, art. 752, § 1º] e nos processos em que figure como parte idoso em situação de risco [Lei 10.741/2003, art. 74]

(para um aprofundamento sobre o problema da igualdade processual, v., p. ex., nosso A igualdade processual como problema normativo. <https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-34-a-igualdade-processual-como-problema-normativo>. Acesso 12 set. 2019).

IX

Não há processo puramente adversarial, asséptico a raisons d’État; nem processo puramente inquisitivo, asséptico a raisons privées. Ambas as figuras são irreais. De todo modo, não é fácil definir a dose de raisons d’État que, em excesso, faz inquisitivo do processo adversarial, nem definir a dose de raisons privées que, em excesso, faz adversarial do processo inquisitivo. A linha entre adversarialismo e inquisitivismo reais é, não raro, tênue. Opostos tão radicais se separam, por vezes, por fronteira fina, delgada, frágil. Mas assim é a vida: caminhos ligeiramente distintos podem levar a lugares completamente diferentes. Não sem motivo, a todo tempo os garantistas, julgando-se distantes da fine line, flertam com o instrumentalismo processual. Pudera: lidar com as razões de Estado no processo exige cuidado, porquanto é como brincar com mercúrio: quanto mais se tenta pressioná-las numa forma coerente, mais se espalham. Por isso, mede-se um garantista pela concepção que tenha sobre a combinação entre «intenções privadas» (que lhe devem ser um majus) e «intenções públicas» (que lhe devem ser um minus). Mas abandonar a concepção do processo como um «espaço preponderante de intenções públicas» e, assim, como um instrumento da jurisdição implica refazer-se do zero. Importa para o processualista na tarefa hercúlea de conhecer autores novos, ler livros desconhecidos, reestudar a disciplina, modificar premissas, reconstruir argumentos e passar a limpo toda a pirâmide conceitual que carrega dentro de si. Sem isso, continuar-se-á repetindo a velha bobice opressiva segundo a qual o processo, mais do que comportar algumas razões de Estado, é ele próprio uma razão de Estado.

Autor

  • Eduardo José da Fonseca Costa

    Juiz Federal em Ribeirão Preto, Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP, Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual, Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual, Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual



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