Com frequência inaceitável entende-se por “doutrina” com presunçosas pretensões normativas apenas argumentos de autoridade destituídos de qualquer cientificidade.
Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins
– I –
A pergunta, título deste texto, atormenta-me há muito tempo[1].
Desde os primeiros estudos do direito deparamo-nos com as assim chamadas fontes do Direito.
Entre as fontes do Direito (formais) escritas, ou seja, de onde brota o manancial de coercitividade de que são revestidas as normas jurídicas, pode-se destacar, nos sistemas jurídicos de um modo geral, a lei, a jurisprudência e a doutrina.
Raoul Charles Van Caenegem questiona: O que é melhor: o Direito dos Precedentes, o Direito das Leis ou o Direito dos Livros?[2]
Caenegem discorre a respeito de cada um desses Direitos, e conclui: É difícil deduzir a partir das lições da história qual destes três tipos é o melhor.
Parece-nos que a questão não está em revelar qual Direito é melhor, mas como é formado, estudado e aplicado em cada uma das sociedades contemporâneas, pois, em que pese a preponderância por uma ou outra forma de produção, existe em maior ou menor grau, em todas as sociedades, influências recíprocas e até mesmo necessárias entre elas. Estas são ou não são fontes do Direito?
Com efeito, em um primeiro momento, cabe destacar que, tanto a jurisprudência quanto a doutrina são fontes escritas e mediatas do Direito, pois se manifestam na sua aplicação, ao passo que a lei (escrita) e os costumes (fonte não escrita) são fontes diretas e imediatas do Direito, na medida em que influenciam na sua própria formação.
Vê-se, assim, que para a concretização da Constituição e conformação do Direito aos seus ditames pouco ou nenhum sentido faz segregarmos as fontes do Direito.
Todavia, não é o que parece ocorrer no Brasil.
Talvez esse fenômeno da onipresença do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça em dizer o Direito não seja algo de novo, mas percebemos que a partir de meados dos anos 2000 essa postura juristocrática tenha preponderado sobremaneira.
E quais seriam as causas desse fenômeno?
Essas podem ser várias, desde o enfraquecimento da atuação do Poder Legislativo até a permissão dada por este na própria legislação, carregada de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados que acaba incentivando atuação cada vez mais discricionária e arbitrária do Poder Judiciário.
Entretanto, queremos nos concentrar na demonstração de que essa supervalorização da atuação do Poder Judiciário, notadamente dos Tribunais de Cúpula (Supremo Tribunal Federal/ Superior Tribunal de Justiça), também tem razão de ser pelo empobrecimento e pouca atuação da doutrina no desenvolvimento de seu papel: o de doutrinar, de constranger epistelomogicamente o ativismo e a discricionariedade judicial; mais que isso, de formar juristas e cidadãos esclarecidos[3].
Nos parece que a doutrina, de um modo geral, enfeixou-se em um casulo de vaidades, ofereceu-se à serviço de uma atuação estratégica junto aos Tribunais Superiores, deu de barato sua contribuição técnica e formadora de juristas e professores para produzirem material próprio e a serviço das Cortes.
Notamos isso, sem qualquer esforço, nas livrarias jurídicas.
Há dezenas de livros produzidos para tribunal, todos recheados com os últimos julgados e precedentes, sem uma linha sequer confrontando criticamente[4] o teor dos votos e acórdãos à luz da legislação e da Constituição Federal.
A imensa maioria dessa (louc)academia concordando e fazendo coro com tudo o que ali restou estabelecido.
Há até os mais modernos[5]: STF é o novo Poder Moderador; CF de acordo com o STF; o contrato visto pelo STJ; CF comentada pelo STF; STF e os tratados internacionais; Os Ministros e o Direito; Lei tal e qual à luz dos precedentes do STJ; CPC à luz dos Tribunais; Compêndio de informativos do STF/STJ por assunto; Súmulas e precedentes comentadas em frases; CPC de acordo com os Enunciados aprovados por entidades de classe ou pelos próprios mentores intelectuais criadores de Fórum ou e outras panfletagens do mesmo naipe[6].
Basicamente, expressiva fração de nossa doutrina vem se prestando a isso e a noticiar efusivamente em seus livros – atualizados com os últimos pronunciamentos – que o STF/STJ acabam de definir sobre o que vem a ser o direito em relação ao assunto X ou Z. Muitas vezes sequer é uma decisão de turma ou de órgão colegiado. Votos agora viraram precedentes!
Não é de hoje que os próprios Ministros se manifestam debochando da doutrina brasileira … talvez com razão.
Uma pesquisa rápida em sítios da internet, alguns pronunciamentos e votos de Ministros no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça para encontramos algumas referências à doutrina pátria:
“Não me comprometo com a tese” (diversos Ministros do STF).
“Há jurisprudência para vários lados, diversas direções e como vi o ministro Toffoli fazer referência, em direito penal e no direito processual, cada caso é um caso. Não existem teses definitivas aplicáveis mecanicamente, é preciso sempre sopesar os fatos em concreto” (Ricardo Lewandosvski).
“Idealizo para o caso concreto a solução mais justa e posteriormente vou ao arcabouço normativo, vou à dogmática buscar o apoio. E como a interpretação é acima de tudo um ato de vontade, na maioria das vezes, encontro o indispensável apoio” (Marco Aurélio).
“País descobre que, ao constitucionalizar todos os direitos, a Carta de 1988 delegou ao STF poderes amplos, gerais e irrestritos. E o Tribunal governa” (Anuário da Justiça, 2009).[7]
“O STF tem a última palavra” (Celso de Mello).
“O Judiciário é o poder moderador, é o que tira a sociedade dos impasses” (José Antonio Dias Toffoli).
“A Constituição é aquilo que o STF, seu intérprete e guardião, diz que é” (Teori Zavascki).
“A interpretação do Supremo vincula o legislador, gostemos ou não” (Gilmar Mendes).
“Para além do papel puramente representativo, supremas cortes desempenham, ocasionalmente, o papel de vanguarda iluminista, encarregada de empurrar a história quando ela emperra” (Luis Roberto Barroso).
“não me importa o que a doutrina diz. Na autoridade de minha jurisdição, decido conforme a minha consciência” (Min. Gomes de Barros).
“Sucede que estamos aqui não para caminhar seguindo os passos da doutrina, mas para produzir o direito e reproduzir o ordenamento. Ela nos acompanhará, a doutrina. Prontamente ou com alguma relutância. Mas sempre nos acompanhará, se nos mantivermos fiéis ao compromisso de que se nutre a nossa legitimidade, o compromisso de guardarmos a Constituição. O discurso da doutrina [= discurso sobre o direito] é caudatário do nosso discurso, o discurso do direito. Ele nos seguirá; não o inverso” (Eros Grau).
E qual é a resposta da doutrina a tudo isso?
Nada ou quase nada. Continuamos a produzir para eles e em razão deles, como se os Tribunais fossem vistos pela doutrina brasileira como o olimpo na produção do Direito.
Parcela considerável de nossa (louc)academia, quando muito, se satisfaz em comentar an passant decisões “interessantes” (rectius: ementas ou Súmulas e, atualmente, os modernos temas em repercussão geral e recursos repetitivos) dos Tribunais ou seus próprios enunciados, os quais, data maxima venia, confirmam a norma extraível do texto (menos mal), ou são grotescamente contra legem, ou ainda, não possuem qualquer função dada a sua vertente de lege ferenda. Não explica ou critica o direito posto, mas cria um novo direito de lege ferenda, apostando que ele realmente existe e deve ser aplicado, mesmo quando, por todos os vértices que se possa observar a “obra”, ela seja absolutamente incompatível com o ordenamento jurídico vigente. Essa doutrina não constrange e não contribui, mas concede licença acadêmica para o arbítrio!
Nem os maiores realistas[8] poderiam imaginar que em um país de civil law – isso mesmo somos da tradição da civil law com uma Constituição dirigente e normativa – poderíamos ir tão longe no que toca à produção jurisprudencial do Direito. Basta lembrar, para isso, que um juiz pode declarar uma lei inconstitucional (por meio do velho e já combalido controle difuso), mas não pode deixar de aplicar um precedente vinculante!
Aliás, em tema de precedentes, no Brasil, mesmo ao arrepio do questionado art. 927 do Código de Processo Civil, se o Ministro espirrar os afoitos saem por aí dizendo que já há um novo precedente na praça. Creio que somos o único país em que um julgado monocrático se torna um “precedente” em menos de duas horas após a leitura do voto! (porque a publicação já é um ato dispensável, segundo alguns sustentam).
Nossa doutrina – sempre me referindo a uma significativa parcela – não realiza qualquer controle, fiscalização ou constrangimento científico, não se preocupando diretamente com a maneira pela qual os Tribunais constroem ou justificam suas decisões. Isso se dá tanto no âmbito do “desenho institucional sobre os julgamentos realizados pelo Poder Judiciário”, ou seja, sua função, quanto pelas “operações mentais que o juiz deve realizar para decidir e a maneira pela qual ele deve justificar publicamente sua decisão”[9].
Aqui abro um parêntese: O dever de fundamentar as decisões, não vem sendo cumprido, a rigor com a licença do próprio Tribunal Supremo – AI nº. 791.292 (tema 339 de repercussão geral julgada), por exemplo, onde se consolidou o seguinte entendimento, in litteris:
“Questão de ordem. Agravo de Instrumento. Conversão em recurso extraordinário (CPC, art. 544, §§ 3° e 4°). 2. Alegação de ofensa aos incisos XXXV e LX do art. 5º e ao inciso IX do art. 93 da Constituição Federal. Inocorrência. 3. O art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas, nem que sejam corretos os fundamentos da decisão. 4. Questão de ordem acolhida para reconhecer a repercussão geral, reafirmar a jurisprudência do Tribunal, negar provimento ao recurso e autorizar a adoção dos procedimentos relacionados à repercussão geral[10].
A propósito o art. 489, § 1º, IV, do CPC (“não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”) veda tal postura. Entretanto, o precedente do Supremo Tribunal Federal continua incólume. Afinal, o que é a lei (2016) frente ao um precedente (2010), no Brasilian law? (rótulo que deram ao nosso sistema!). Um mero detalhe! Talvez precisemos de uma “LINPB” (Lei de Introdução de Normas Precedentais Brasileira) disciplinando o tema e de uma nova “LINDB” prevendo a forma como as antinomias entre precedentes e lei devem ser solucionadas! Meu receio é que surja algo do tipo: “o precedente revoga/ab-roga lei” ou “cria óbice à atuação do Poder Legislativo”, como já ocorreu, p. ex., no REsp 1.789.913/DF. Nesse julgado, proferido pela 2ͣ Turma do STJ, firmou-se o entendimento segundo o qual “o princípio da boa-fé processual deve ser adotado não somente como vetor na aplicação das normas processuais, pela autoridade judicial, como também no próprio processo de criação das leis processuais, pelo legislador, evitando-se, assim, que este último utilize o poder de criar normas com a finalidade, deliberada ou não, de superar a orientação jurisprudencial que se consolidou a respeito de determinado tema”[11]. Fecho o parêntese: Help. Get me out of here!
Pensamos que a doutrina tem uma função essencial no Direito. Em tempos estranhos pelo qual passamos no Brasil, “o jurista tem a grave tarefa de promover a melhor aplicação do direito, aumentando, com sua atividade, o grau de certeza da ciência do direito. A tarefa do jurista é a luta contra o arbítrio”[12].
À doutrina brasileira é esperada a hora de fazer seu papel: agir com responsabilidade, combatendo o ativismo e o arbítrio judicial, contribuindo na formação do sentido do Direito, conquistando sua importância como genuína e insuperável fonte autêntica e, fundamentalmente, com lealdade e ética, deixando de apenas reproduzir, como mensageiros ingênuos[13], e passar a honrar o seu papel de destaque na produção do Direito.
– II –
Num país em que cumprir a legalidade se tornou supérfluo, “démodé”, desprezível, a doutrina tem grandes responsabilidades, sob pena de em poucos anos, diante das posturas neoconstitucionalistas e neoprocessualistas que estamos mergulhados até o pescoço, destruírem as pilastras do edifício democrático em manutenção permanente, denominado Estado de Direito.
Não posso deixar de consignar a minha repulsa a esse mantra pentecostal que se tornou o neoconstitucionalismo – teoria responsável pelo estado da arte em que nos encontramos atualmente – após 32 anos da promulgação da Constituição Federal, sobre a qual se impõe a bandeira das decisões justas.
Não há um livro, desses disponíveis no mercado, que não abra no primeiro Capítulo o título: “Do Neoconstitucionalismo” e em sua esmagadora maioria – não se sabe se os autores se falam ou se conhecem para pedir autorização, nem quem fez primeiro, mas, sem exceção, colocam o tema, grosso modo, assim:
Marcos fundamentais: a) HISTÓRICO: Estado Constitucional de Direito; Documentos a partir da 2 Guerra Mundial e Redemocratização; b) FILOSÓFICO: pós-positivismo; direitos fundamentais e aproximação do direito com a Ética e a Moral; c) TEÓRICO: força normativa da CF; supremacia da CF (constitucionalismo dos direitos fundamentais) e nova dogmática da interpretação constitucional (controle de constitucionalidade)[14]
Esse movimento são vulgatas falaciosas que resgatam a “jurisprudência dos interesses” e “jurisprudência dos valores”.
Os neos possuem a ideia fixa de que princípios são “valores”, tais como, “janelas abertas à disposição dos julgadores para preencher caso a caso”. Princípios, para essa corrente dominante hoje no Brasil “abrem a intepretação”.
Todavia, princípios são padrões normativos (postos na Constituição Federal expressamente) que não podem ser ponderados/sopesados; sua função única é desvelar os elementos que se encontram obnubilado pela incompletude interpretativa das regras. Princípios, por meio da compreensão do teorema (âmbito normativo e programa da norma), fecham a interpretação!
No Brasil, o neoconstitucionalismo é sinônimo de interpretação principiológica ponderativa e/ou interpretação “livre”, sem qualquer constrangimento diante dos parâmetros legais prescritivos. Em decorrência delas chegamos, exemplificativamente, aos seguintes “entendimentos”:
(i) aborto permitido até o terceiro mês;
(ii) ampliação irrestrita a legitimidade de associações para promover ADPF;
(iii) revogação da presunção de inocência (que se deu por causa de uma operação denominada “Lava-Jato”);
(iv) rol do art. 1015 do CPC – taxativo mitigado (REsp 1696396 e REsp 1704520. Voto da relatora Min. Nancy Andrighi. A Corte Especial finalizou o julgamento e estabeleceu que as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento são taxativamente previstas no rol do art. 1.015 do CPC. Entretanto, a decisão consignou que havendo situações de urgência as referidas hipóteses podem ser mitigadas/relativizadas – julgamento encerado em 05/12/2018, votação por maioria: 7 votos a 5 votos). A norma restritiva por excelência recebeu correção/abrandamento jurisdicional a permitir atuação arbitrária e altamente subjetivista por parte do julgador;
(v) decisões per relationem – mantendo entendimento jurisprudencial anterior a edição do CPC/2015 que em seus arts. 489, § 1º IV e VI, bem com o art. 1021, § 3º vedam expressamente tal “drible” ao art. 93, IX da CF. O Brasil me parece o único país do mundo em que a jurisprudência (anterior a uma lei, para ficarmos apenas nos dispositivos do CPC) se sobrepõe ou revoga a lei, sem que se lhe declare sua inconstitucionalidade!
(vi) imprescritibilidade das ações de improbidade administrativa (art. 35 § 5º da CF), notadamente o “ajuste de voto do Min. Roberto Barroso”[15].
(vii) acabo de tomar conhecimento (19/9/2018) que o STJ por 7 x 4 (EAREsp 746.775/PR) decidiu pela impossibilidade de impugnação parcial, assentando que, incumbe ao agravante infirmar, especificamente, todos os fundamentos da decisão que inadmitiu o recurso especial. Prevaleceu o entendimento de que a decomposição do provimento judicial em unidades autônomas tem como parâmetro inafastável a sua parte dispositiva e não a fundamentação como um elemento autônomo em si mesmo. Na visão do STJ, não haveria diversos capítulos no decisum, que é formado por um único dispositivo, qual seja, a inadmissão do recurso. Afirmou-se que “a decomposição do provimento judicial em unidades autônomas tem como parâmetro inafastável a sua parte dispositiva e não a fundamentação como um elemento autônomo em si mesmo.” O Ministro Felipe Salomão, categoricamente sustentou que a decisão agravada é incindível e, portanto, deve ser impugnada em sua integralidade. Enfim, “a parte agravante deve mesmo impugnar todos os fundamentos da decisão agravada”, na esteira do que previa a súmula 182 do STJ”. Por esse entendimento, não se impugna, nos termos do art. 932, III do CPC, “especificamente os fundamentos da decisão recorrida” em que acha sucumbido a parte, mas a sua totalidade, sejam eles autônomos ou não! Impugna-se até mesmo o que não se pretende, ou seja, favorável à parte ou que o recorrente ao final concorde com ele. E a nova regra do tudo ou nada!
(viii) REsp 1.771.815/SP, no bojo do qual a Terceira Turma formou o entendimento de que o instituto processual estabelecido no artigo 942 do CPC, a par de sua dicção precisa e clara disposta no caput (Quando o resultado da apelação for não unânime) estendeu a possibilidade de o colegiado “ampliado” reapreciar/rejulgar até mesmo eventual capítulo do acórdão julgado de à unanimidade[16], mesmo que tal “técnica” não seja considerada uma nova modalidade recursal!
(ix) AREsp 1.268.706/MG, por meio do qual um dos órgãos fracionários do STJ (Primeira Turma) desconsiderou a baliza legal máxima estabelecidas no artigo 1.026, § 2º do CPC, para condenar a parte que manejou embargos de declaração considerados protelatórios a sanção superior ao limite máximo prescrito no dispositivo (multa não excedente a dois por cento sobre o valor atualizado da causa)[17], ao fundamento de que tal porcentagem foi considerada “módica”! Qual o critério para elevar a sanção além do máximo legal permitido se o próprio dispositivo estabelece em seu § 3º que, eventual majoração, somente terá cabimento na “reiteração de embargos de declaração manifestamente protelatórios”, elevando-se a “até dez por cento sobre o valor atualizado da causa, e a interposição de qualquer recurso”, condicionando, inclusive, “ao depósito prévio do valor da multa”?
(x) REsp 1.760.966/SP, o STJ (Terceira Turma) firmou o entendimento segundo o qual, a norma restritiva do art. 304 do CPC – “A tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso”, também permite o manejo de qualquer meio impugnativo, inclusive, a apresentação de contestação (meio de postulação) para impedir a estabilização. O STJ, mais uma vez, desconsiderou a opção legislativa restritiva do recurso, ignorando, entre outras questões, o próprio juízo de retratação típico e obrigatório do agravo de instrumento (art. 1.018 do CPC) e o procedimento especial estabelecido para as tutelas antecipadas antecedentes. Com isso tornou um instituto que já é ruim (do ponto de vista legislativo e que merece reforma nessa seara) em algo que dificilmente atingir qualquer resultado prático mesmo para os mais radicais utilitaristas idealizadores do texto. O que já era tenebroso, como dito, tornou-se ainda pior diante da ampliação desmedida do texto normativo de natureza eminentemente restritiva. A solução para esse dispositivo, com todas as venias cabíveis, seria a sua revogação.
(xi) Rcl 36.476, o STJ (Corte Especial) firmou o entendimento segundo o qual, não cabe o manejo da ação fundada no art. 988, § 5º, II do CPC, face a um pronunciamento destoante entre a solução conferida ao caso concreto e o paradigma normativo obrigatório, inviabilizando, por essa via processual, a revisitação da tese firmada sobre a matéria.
Com efeito, a jurisprudência dos valores em boa parte se aproxima de sua antecessora, a jurisprudência dos interesses, mas com ela não se confunde[18]. Sendo de rigor rememorar que aquela leva à criação de padrões decisórios calcados no subjetivismo (enraizado no ideal individual), os quais são lançados pelo sujeito encarregado de decidir, independentemente da existência de espaços contidos nos textos normativos e, por vezes, contra legem.
É nesse estado da arte que, no Brasil, auxiliados pela descoberta da ponderação de valores-princípios e regras abrimos uma aposta no protagonismo judicial como forma de concretizar direitos, sobretudo por meio de pronunciamento dos juízes que acreditam, por meio de suas concepções pessoais, que possam produzir e distribuir decisões justas. A esses eu os denomino de juiz normalpata[19].
– III –
Essa doutrina[20] “precedentalistas” que estamos (re)produzindo dia a dia, alicerçada nas bases dogmáticas do neoconstitucionalismo, aniquila a ideia de Estado Democrático de Direito.
A lazy doctrine, uma mistura perversa de comodismo com uma espécie de “escolha por menos esforço e menos comprometimento”, nos leva uma academia Macunaíma, a qual adota o “princípio” da malemolência como estilo[21].
Uma advertência: longe está essa parcela da doutrina de ser qualificada como incapaz ou não dotada de sapiência; ao revés, são os efeitos acima identificados que a torna pobre, preguiçosa, sem brio, desnecessária e descomprometida.
Ora, se para concordar com um julgado esdrúxulo que nega qualquer sistematicidade ou adequação ao ordenamento, inclusive, por vezes, dissonante do que até a semana passada vinha sendo decidido, se terá menos trabalho, menos argumentos e menos esforço epistemológico, por evidente que nossa doctrine Macunaíma enveredará pela solução mais cômoda e menos comprometedora.
Os vieses cognitivos dessa parcela da doutrina, na linguagem dos ensinamentos de Daniel Kahneman[22], não trazem solução adequada (racionalmente argumentada) para nossos problemas, nem rápido nem devagar, por uma cogitação mais acautelada, simplesmente porque não reflete … apenas reproduz sem qualquer diagnóstico “a autoridade da decisão” … um agir pautado em mera reprodução assintomática.
Não é exagerado reconhecer que se a constitucionalidade das leis for reiteradamente questionada pelos interpretes, utilizando-se dos princípios, juízos de valores e morais do próprio aplicador como parâmetros e da ponderação como técnica performática a legitimá-los, elas perderão sua capacidade de guiar as condutas dos indivíduos e do próprio Estado.
Mais que isso, “disseminadas as teses do neoconstitucionalismo e tornada endêmica a prática de contestação das normas, os indivíduos acabarão por ter que reconstruir em todos os casos as razões que entendem ser relevantes para a solução de seus problemas inerentes ao Estado de Direito”[23].
Levado ao extremo, e temo que a ele já batemos às portas, as teses neoconstitucionais aniquilam a ideia de Estado de Direito na medida em que permite, “conquanto a Constituição Federal de 1988 tenha conferido ao Poder Judiciário a prerrogativa de aferir a constitucionalidade de leis, isso não parece significar que ela tenha outorgado aos juízes o poder de julgar o legislador”[24]. Ora, não havendo “cláusula constitucional clara e frontalmente violada, não há que se falar em controle das opções legislativas”[25], sob pena de desmoronamento do edifício normativo construído democraticamente num típico Estado de Direito.
Ouso discordar da postura de substancial parcela de nossa claque[26] em aceitar e reproduzir acriticamente “precedentes”. É preciso elaborar contrapontos indicando aspectos técnicos-teóricos que poucos perceberam ou extraíram do conteúdo das decisões-paradigmas de nossas Cortes, visando, sobretudo, a construção de uma doutrina de “olhos atentos”, séria, respeitada e que, de fato, possa contribuir no aprimoramento da tutela jurisdicional.
Esse é o papel da academia, seja ela fundada nas mais diversas bases epistêmicas do pensamento teórico-dogmático-filosófico, desde que tenha como mote o cuidado com o Estado de Direito e tudo o que o circunda. Somente dessa forma poderemos combateremos as diversas espécies de ativismos judiciais levados a efeito nos últimos anos no Brasil.
Agnes Heller, tem razão ao dizer: “Isso é anacrônico? Espero que não. Juntamente com vários outros, estou nadando contra a maré. Esperemos a maré baixar”[27].
Até que ela baixe, vou na contramão e na certeza de que não sigo sozinho!
[1] Uma versão com alterações deste texto foi publicada em obra coletiva. Consultar: PEGINI, Adriana Regina Barcellos; FERREIRA, Daniel Brantes; SOUSA, Diego Crevelin; MALAFAIA, Evie Nogueira e.; RAMOS, Gláuco Gumerato; DELFINO, Lúcio. PEREIRA, Mateus Costa e FILHO, Roberto P. Campos Gouveia. Processo e Liberdade. Estudos em homenagem a Eduardo José da Fonseca Costa. Londrina: Thoth, 2019.
[2] CAENEGEM, Raoul Charles Van. Juízes, legisladores e professores: capítulos de história jurídica europeia: palestras Goodhart 1984-1995. Tradução de Luiz Carlos Borges. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 89.
[3] Hoje o cidadão sabe de cor o nome dos Ministros do STF e quiçá dos 33 que compõem o STJ, mas não se recorda ou desconhece completamente o nome dos representantes de seu Estado no Parlamento.
[4] Lembrado que elaborar uma análise (jurídica) de cunho crítico é, grosso modo, salientar as qualidades e indicar eventuais problemas e/ou incongruências normativas. Aquele que tece critica(s), faz uma análise, examina, aprecia, emite uma opinião (jurídica) que pode ser favorável ou desfavorável ao objeto criticado. Sempre há contribuição por mais que os “criticados” possam se sentir melindrados com isso. Advirta-se, por oportuno, que a crítica tem como objeto-destino, ideias, teses e raciocínios, não se estendendo, evidentemente, à(s) pessoa(as) que a(s) elabor(ou)aram.
[5] Em tempo: os nomes das obras citadas são fruto da imaginação dos autores, sendo todas fictícias.
[6] A propósito, não poderia deixar de citar, nessa oportunidade, Paulo Ferrareze Filho: “Para a corja dos objetivistas da quantidade (as faculdades de administração e de direito estão lotadas de gente assim …), a arte é um grande saco de merda se rasgando, como já escreveu Bukowski, um dos maiores filósofos contemporâneos. Todo imbecil da objetividade odeia arte. Aliás, tudo o que não se conhece parece à primeira vista, inútil. Tende-se a fazer um julgamento moral da ignorância quando se rechaça aquilo que a capacidade de compreensão não alcança” (Manual politicamente incorreto do direito no Brasil. 2 Ed. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2017, p. 70).
[7] https://bit.ly/3ytGosh.
[8] Hart é considerado um positivista realista e seu objeto de estudo é o Direito Inglês. Em sua obra “O Conceito de Direito”, reconhece que o Direito não é fruto único e exclusivo da vontade dos Tribunais. Veja-se “É evidentemente muito importante, se quisermos compreender o direito, ver como os tribunais o administra, quando chegam à aplicação de suas sanções. Mas tal não deve levar-nos a supor que tudo o que há para compreender é o que sucede nos tribunais” (Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 54).
[9] Nesse sentido: RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes?: para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013, p. 151.
[10] AI 791292 QO-RG, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, julgado em 23/06/2010, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-149 DIVULG 12-08-2010 PUBLIC 13-08-2010 EMENT VOL-02410-06 PP-01289 RDECTRAB v. 18, n. 203, 2011, p. 113-118.
[11] REsp 1789913/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/02/2019, DJe 11/03/2019). Sobre referido julgado, conferir: DELFINO, Lúcio. Alquimia doutrinária – legislativa-jurisprudencial e a (perniciosa) sublimação da boa-fé processual. https://bit.ly/3gQm52a.
[12] ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Responsabilidade da doutrina e o fenômeno da criação do direito pelos juízes. In Nelson Nery Junior, et al (Coords). Processo e Constituição – Estudos em homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira. RT, 2006, p. 422/430.
[13] Fundamental à exata compreensão de “mensageiros ingênuos” o aforismo Kafka, lembrado por Gilberto Morbach: “Eles tiveram de escolher entre se tornarem reis ou mensageiros de reis. Como crianças, todos quiseram ser mensageiros; consequentemente só há mensageiros. Eles galopam pelo mundo gritando uns aos outros mensagens que, como não há reis, perderam o sentido. Dariam fim alegremente à sua vida miserável, mas não ousam, em razão de seu juramento de serviço”. (KAFKA, Franz. The Blue Octavo Notebooks. Nova York: Exact Change, 1991, p. 28, In O que é o Direito? Será aquilo que os tribunais dizem que é? https://bit.ly/3mMYSBS.
[14] Ver por todos: BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista da Associação dos Juízes Federais do Brasil. Ano 23, n°82, 4°trimestre, 2005, p.123.
[15] “A CF quando quis estabelecer a imprescritibilidade fez de forma expressa. A prescrição circula na ideia de segurança jurídica, de modo que se há uma ambiguidade deve prevalecer o princípio da segurança jurídica. Segue a tese de aplicação do prazo de 5 anos estabelecido na LIA combinado com o Estatuto dos Servidores, inclusive fazendo a distinção quando existir crime. Acompanha o relator. Pedi vênia para fazer considerações acerca do voto. O juiz precisa conduzir a decisão por uma norma jurídica, seja princípio, seja regra. O primeiro passo é interpretar a norma dentro das possibilidades semânticas. O segundo passo é identificar se há valores ou direitos fundamentais envolvidos naquela decisão. E o terceiro passo é a buscar do melhor resultado possível para a sociedade. A prescritibilidade nesse caso não produz o melhor resultado para a sociedade. Imprescritível a ação de ressarcimento de danos decorrente de ato de improbidade administrativo doloso. Retifica o voto para considerar imprescritível nas hipóteses de ato ímprobo doloso” (RE 852.475, tema 897 de Repercussão Geral, Sessão Plenária de 8.8.2018).
[16] Colhe-se do aresto o seguinte entendimento elucidativo da afronta ao caput do dispositivo: “(…) 8. Os novos julgadores convocados não ficam restritos aos capítulos ou pontos sobre os quais houve inicialmente divergência, cabendo-lhes a apreciação da integralidade do recurso”.
[17] A ementa do acórdão chega a negar a prescrição restrita do texto legal expresso no artigo 1026, § 2º do CPC, in verbis: “2. O art. 1.026, § 2º, do CPC/2015 permite a aplicação de multa não excedente a dois por cento do valor atualizado da causa quando interpostos embargos de declaração reputados, fundamentadamente, manifestamente protelatórios”.
[18] “A chamada jurisprudência dos valores (wertungsjurisprudenz) representa mais uma continuidade do que uma verdadeira ruptura com o método da jurisprudência dos interesses. […], a principal diferença entre essas duas correntes metodológicas reside no fato de que, a jurisprudência dos interesses possui um acentuado corte sociológico (da identificação dos interesses em conflito que levaram o legislador a editar a norma), ao passo que a Jurisprudência dos valores é revestida de um colorido filosófico: auxiliar o julgador a identificar os valores que subjazem ao direito naquele dado conflito levado à sua apreciação […]. Uma segunda diferença está no lugar privilegiado para o Leitmotiv da discussão: na jurisprudência dos interesses […] as atenções estão voltadas para a atividade do legislador. A tarefa do intérprete, aqui, é reconstruir os argumentos e ponderar os interesses que levaram à edição do diploma legislativo. Já no caso da jurisprudência dos valores, o polo da discussão é deslocado para a atividade jurisdicional, o problema a ser enfrentado é a fundamentação da decisão final. Aqui a preocupação é orientar a decisão dos juízes segundo os valores que constituem os fundamentos do convívio social. […] Na última década, começaram a surgir estudos […] que dão conta da expansão do judge made law no continente Europeu e, mais recentemente, pelos países periféricos (hoje chamados de emergentes, como é o caso do Brasil). Ou seja, as transformações operadas pelo constitucionalismo do segundo pós-guerra e o papel efetivo desempenhado pelo Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht) alemão para efetividade da Lei de Bonn de 1949, passam por essa tendência, hoje global, de ‘expansão do poder judicial’. Essa é outra diferença decisiva que a jurisprudência dos valores guarda com relação à jurisprudência dos interesses. No caso da primeira, seus postulados metodológicos não se restringem ao âmbito acadêmico, mas tem como grande ‘laboratório’ a atividade do Tribunal Constitucional Federal alemão nas primeiras décadas da segunda metade do século XX que recepcionou muitas de suas teses”. (ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do direito. São Paulo: RT, 2013, p. 340/341).
[19] A normalpatia é a psicopatia de todos os juízes que acreditam que fazem justiça por meio de suas decisões, pouco ou nada importando o que o ordenamento jurídico descreve/prescreve.
[20] Luiz Alberto Warat há mais de duas décadas nominou essa doutrina de senso comum teórico dos juristas. (Introdução geral ao direito. Interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994, p. 88/89).
[21] Inspirado em texto da lavra de George Marmelstein. Lazy judge e fundamentação das decisões judiciais: ou quando exigir demais pode gerar um efeito contrário do pretendido. In Direito fora da caixa. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 245/253.
[22] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 521/523.
[23] GALVÃO. Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do estado de direito. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 28/29.
[24] GALVÃO. Ob. cit., p. 45/46.
[25] GALVÃO. Ob. cit. p. 46.
[26] Uma espécie de grupo de adoradores combinados entre si em aplaudir e reverenciar toda e qualquer interpretação conferida pelas “Cortes Supremas e Superiores” sem qualquer grau de análise séria e crítica, caso seja necessário e útil.
[27] Além da justiça, 1998.
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