Processo para Calmon de Passos é um dos temas mais relevantes de toda sua produção. Há uma relação de causa e efeito direito e processo, que deve ser inescapável a qualquer análise a partir dessas lições. Trabalhamos em nosso último artigo a respeito do conceito de direito (clique aqui). É chegada a hora de estabelecer as bases do conceito de processo.
O direito é o resultado de todo um processo que o precedeu, seja na perspectiva macro – produção da norma geral e abstrata –, seja na perspectiva micro – produção da norma individual e concreta –, para a definição de seu conteúdo. Assim, o direito, vertido em linguagem, que forma “textos, proposições e prescrições são o resultado de todo um processo que os precedeu e foi determinante para a definição de seu conteúdo, o qual, em si mesmo e enquanto texto, de nenhum poder de determinação se revestiu, antes o conteúdo foi decisivamente determinado pelo processo de sua produção que, este, foi preeminente e determinante. Discipliná-lo é o que se faz imperioso para se lograr o produto desejado.”[1] É por essa razão que Calmon entende que antes de o produto (= direito) condicionar o processo é o processo que condiciona o produto (= direito). Com efeito, em nível macro, a norma jurídica de caráter geral é determinada pelo processo de sua produção (processo de natureza política), bem como em nível micro, pela qual o decisor deve editar a norma reguladora de um conflito precisamente delimitado em termos de pessoas, de tempo, de lugar e de circunstâncias. Nessa hipótese, contudo, a natureza desse processo de produção é eminentemente jurídico.
A construção precisa ser burilada. A noção de processo para Calmon de Passos tem ínsita a conjugação relacional com o direito como produto de sua produção. O direito é, portanto, a manufatura daquilo que o processo realiza por seus produtores. Nessa perspectiva é que o processo deve ser conceituado como a atividade “por meio da qual se produz uma norma jurídica, mediante a formulação de uma decisão de autoridade, entendido o termo procedimento como referido ao complexo de atos juridicamente ordenados de tratamento e obtenção de informações, que se estrutura e se desenvolve sob a responsabilidade de titulares de poderes públicos e serve para a preparação da tomada de decisões, sejam legislativas, sejam administrativas, sejam jurisdicionais”.[2]
É a partir dessa noção que se desenvolve a finalidade do processo para Calmon de Passos: “[I]mpõe emprestarmos maior cuidado ao problema do processo de produção do direito, que sempre deve estar condicionado ao perfil sócio-político-econômico da sociedade que o produz. E deve ser produzido, tanto em termos de enunciação quanto de aplicação, em consonância com o que determina sua própria razão de ser: institucionalizar, com efetividade, os reais limites (materiais) que traçam a fronteira entre arbítrio (força bruta, poder sem compromissos institucionalizados) e o poder político (um poder que se submete a limites institucionalizados para que se efetive sem instabilidade).”[3] Preocupado com as críticas, muitas vezes veladas de seus pares, Calmon justificava que o processo, mesmo nessa perspectiva, não é um fim em si mesmo. “O processo, entretanto, não é jamais valioso em si mesmo, mas se integra no próprio ser do direito, que é por ele produzido, tendo sua existência condicionada, inclusive, a esta produção, donde a valiosidade referir-se ao direito, enquanto produto, não ao processo de sua produção.”[4]
É neste ponto, o da finalidade do processo, que o pensamento de Calmon de Passos encontra o pensamento do garantismo processual brasileiro. O fim do processo é impor barreiras para o exercício do poder estatal. É papel do jurista, em especial da doutrina – sempre criticamente pelo mestre baiano –, traçar de maneira clara as fronteiras (ou limites) entre o exercício do poder político institucionalizado (dominação legítima) e a esfera de liberdade dos indivíduos (dominados). “Cabe-nos assegurar o limite instituído para definir o espaço da dominação legítima que, se ultrapassado, configura o arbítrio, que nos incumbe deslegitimar, bem como o da resistência legítima, que se ultrapassado, também nos cabe obstar.”[5]
As semelhanças com o pensamento garantista não param por aí. A ferrenha crítica ao instrumentalismo processual, presente no terço final da obra de Calmon, foi o grande motivo para sua colocação no index dos cardeais do processo brasileiro. Ele foi um dos primeiros processualistas a apresentar as diversas inconsistências do pensamento em questão, nomeadamente em vista da quebra do equilíbrio processual entre as partes e pela hipertrofia do papel do juiz na relação jurídico-processual, que, por ser detentor do poder, potencializou seu agir antidemocrático, pela desestruturação de expectativas socialmente formalizadas em termos de segurança do agir humano e previsibilidade de suas consequências. Sempre atento à realidade, Calmon de Passos chamava a atenção para o fato de que a instrumentalidade do processo de matriz dinamarquiana, que influenciou as reformas processuais da década de 90 e dos anos 2000, privilegiou “o autor, justamente aquele a quem cabe o dever ético e político de comprovar a inelutável da sujeição do outro a sua pretensão. Numa total inversão de valores, tem-se como ‘dado’ o que jamais pode ser entendido nesses termos antes de comunicativa e intersubjetivamente produzido. Esses erros levaram a que as reformas, em lugar de resolverem a crise da Justiça, agravassem-na e o fizessem progressivamente, até atingir o intolerável, que determinará o indesejável – a implosão, quando se queria e se necessitava apenas de reformulação.”[6]
Calmon de Passos não viveu o suficiente para refletir a respeito do movimento do formalismo-valorativo e de seus filhotes mais recentes, a cooperação (de matriz portuguesa, importada por Grassi e Didier), a colaboração (de matriz gaúcha, produzida por Mitidiero) e a comparticipação (de matriz mineira, elaborada por Nunes). Dizemos, contudo, que esses movimentos, que se autoproclamam como a “quarta fase metodológica do processo”, não passam de lapidações da própria instrumentalidade, em razão da contínua aposta no agigantamento dos poderes judiciais. Como as reformas do CPC/73 beberam diretamente das águas da instrumentalidade e da efetividade processuais, o CPC/2015 tomou do riacho da cooperação. Se vivo, certamente Calmon de Passos utilizaria essa passagem para justificar o desacerto de nossos autores: “E porque as reformas, em sua dimensão pretensiosa, agravam antes de solucionar? Porque exacerbam a litigiosidade e favorecem o arbítrio. Essas duas coisas casadas, estimulam o inescrupuloso a postular e decidir sem ética e sem técnica, transformando aos poucos o espaço forense no terreno ideal para a prática do estelionato descriminalizado, a par de incentivarem os ignorantes a ousarem cada vez mais, os arbitrários a oprimirem cada vez mais, os vaidosos a cada vez mais se exibirem e os fracos a cada vez mais se submeterem. O que pode ter sido pensado com boas intenções, na prática, justamente pela ‘viscosidade’ da decantada ‘instrumentalidade’, transforma-se em arma na mão de sicários, ou para usar as expressões de um ilustre advogado paulista – faz do direito e do processo, nos dias presentes, a pura e simples arte, ou artimanha, de se colocar o punhal, com precedência, na jugular do adversário. E ele completava entre infeliz e irônico: ‘Legalidade, dogmática, teoria jurídica, ciência do direito, tudo isso é pura perda de tempo e elucubração para o nada’. Em resumo – não aliviaram os bons da intolerável sobrecarga que os esmaga e proporcionaram aos maus meios excelentes para se tornarem piores.”[7]
E, sendo o processo o meio para a criação do direito, qualquer noção calcada no instrumentalismo, que todo exercente do poder da capacidade de ampliar os próprios poderes a partir de valores metajurídicos, sem observar as balizas impostas pelo próprio processo, deve ser de pronto rechaçada. “Jamais o Direito deve ser produzido com vistas a valores transcendentes ou transcendentais, metafísicos, absolutos e ahistóricos, mas pragmaticamente, alicerçado na real correlação de forças existentes na sociedade, porquanto, se assim não for, estaremos mistificando para lograr mais dominação antes de regularmos para assegurar mais emancipação.”[8]
Não é toda e qualquer decisão estatal que pede um processo para sua formação. “Somente quanto a decisão repercutir, concretamente, na esfera de liberdade ou do patrimônio de um sujeito é que o atendimento a essas garantias [do processo] se imporá, sob pena de invalidade do ato. Nessa hipótese, quanto se entende como constitutivo do devido processo como garantia individual (contraditório, publicidade, fundamentação e controle da decisão) terá que ser atendido, sob pena de invalidade do ato.”[9]
Em tom de síntese, predicava Calmon: “O direito jamais se materializa, concretiza-se, adquire, como produto, um corpus, dissociando-se de seu produtor, porque o produto do operar jurídico é apenas linguagem e como linguagem algo impensável separado do próprio processo comunicativo. Por isso mesmo o direito é processo (não o processo que a gente vê nos malsinados autos e na malsinada peregrinação nos fóruns e tribunais, mas o produzir disciplina domesticadora do arbítrio e limitadora da discricionariedade) e somente processo, pelo que é algo de todo dependente dos operadores que nele intervêm. O direito é o que dele fazem os seus produtores, seja no momento predominantemente político de legislar, seja no momento predominantemente pragmático de sua aplicação, que para não se fazer disfuncional reclama seja submetida à mais rigorosa das técnicas possíveis com vistas à eliminação de todo arbítrio e controle da discricionariedade que seja inevitável. Tudo mais é adereço, a azeitona que coroa a empada, a uva que adorna o sorvete, o faz de conta estético que não garante o bom sabor do produto. Poderia, portanto, resumir o que é necessário e o único necessário para a eficiência da Justiça.”[10]
Com essas duas premissas, é seguro seguir para nossa meta inicial: é possível defender, a partir do pensamento de Calmon de Passos, a flexibilização do procedimento? Voltaremos na próxima semana com a resposta.
[1] PASSOS, J. J. Calmon de. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 33.
[2] PASSOS, J. J. Calmon de. O processo administrativo na Constituição de 1988, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 553.
[3] PASSOS, J. J. Calmon de. Reflexões, frutos de meu cansaço de viver ou de minha rebeldia?, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 515.
[4] PASSOS, J. J. Calmon de. Cidadania e efetividade do processo, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 394.
[5] PASSOS, J. J. Calmon de. Reflexões, frutos de meu cansaço de viver ou de minha rebeldia?, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 515.
[6] PASSOS, J. J. Calmon de. Instrumentalidade do processo e devido processo legal, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 41.
[7] PASSOS, J. J. Calmon de. Instrumentalidade do processo e devido processo legal, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 41
[8] PASSOS, J. J. Reflexões, frutos de meu cansaço de viver ou de minha rebeldia?, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 515.
[9] PASSOS, J. J. Calmon de. O processo administrativo na Constituição de 1988, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 555.
[10] PASSOS, J. J. Calmon de. Implicações entre o jurídico e o social. Reflexão que se faz urgente, in Ensaios e artigos, vol. I, Salvador . Editora Juspodivm, 2014, p. 360-361.